Título: 54% das gestações em jovens não chegam ao fim
Autor: Klingl, Erika
Fonte: Correio Braziliense, 03/05/2009, Cidades, p. 27

Segundo estatísticas inéditas da rede pública, apenas 46% das meninas que engravidam até os 19 anos têm o filho. Todos os dias, ao menos duas garotas precisam de atendimento pós-aborto no Distrito Federal

Dados inéditos sobre gravidez na adolescência e juventude na rede pública do Distrito Federal intrigam os especialistas em saúde. Em 2007, 13.658 exames de gravidez de meninas com até 19 anos completos tiveram resultado positivo. No entanto, apenas 6.267 desses bebês nasceram, segundo os registros feitos nos postos de saúde e hospitais. Significa dizer que menos da metade (46%) das garotas grávidas fizeram as consultas de pré-natal e tiveram o filho. Os números não são diferentes dos seis anos anteriores. Desde 2002, metade das gestações de brasilienses com até 19 anos não foram para a frente. Para especialistas ouvidos pelo Correio e segundo a própria Secretaria de Saúde do DF, a explicação mais plausível é a opção de boa parte dessas meninas pelo aborto clandestino. ¿A gravidez em meninas muito novas é de risco, mas as que já estão no fim da adolescência e início da juventude oferecem o mais baixo risco. Portanto, em nenhum hipótese pode-se alcançar um percentual tão alto de interrupções naturais¿, avalia o médico e advogado Edvaldo Dias Carvalho Júnior, professor de bioética da Universidade de Brasília (UnB). ¿A cada ano, 7 mil gestações somem do nosso sistema. Isso nos dá muita preocupação porque mostra, entre outras coisas, que não estamos conseguindo alcançar essas meninas e meninos para os riscos do sexo sem prevenção e para as consequências de práticas ilegais¿, completa o subsecretário de Programação, Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria de Saúde, Helvécio Bueno.

Por tratar-se de uma prática irregular, não há estatísticas oficiais sobre abortos. No entanto, é possível dizer que, no mínimo, são feitos dois procedimentos desse tipo por dia no DF. De acordo com a publicação Sala de Situação, que reúne todos os registros da rede pública de saúde, entre 2002 e 2007 foram feitas 4.298 curetagens e aspirações manuais intrauterinas após as mulheres terem interrompido a gravidez. Os dois procedimentos servem para ¿limpar¿ o útero quando o aborto não se deu de forma completa. São usados em casos extremos, pois as jovens que optam pelo aborto agem dentro da ilegalidade e estão sujeitas ao Código Penal.

A demora para procurar ajuda em casos de complicação pode levar a graves comprometimentos do sistema reprodutor e inclusive à morte. Apesar de muito inferior ao total de gestações que não vão até o fim, as curetagens denunciam ao menos dois abortos por dia na faixa etária até 19 anos.

O professor da UnB vai além: ¿Os casos de curetagem são a ponta do iceberg. Apenas um mínimo dos abortamentos, hoje em dia, precisa desse tipo de intervenção¿. De acordo com Edvaldo, a maioria das meninas não seguem para os hospitais após um abortamento ilegal.

Remédio Isabele*, com apenas 17 anos, acaba de passar pela experiência de abortar. ¿Fiquei grávida sem querer. O garoto que me engravidou trabalha e comprou o remédio para eu tomar¿, admite a jovem. Sem dinheiro nem para comprar o exame de farmácia e sem saber o que estava acontecendo com o corpo, ela foi ao Posto de Saúde de Ceilândia, onde mora, para fazer uma consulta. O exame de sangue acusou a gravidez e a menina entrou em pânico. ¿Meus pais não sabem que eu já transei. Imagina se eu chego grávida? Minha mãe é evangélica.¿

Com o remédio em mãos, Isabele foi passar o fim de semana na casa de uma amiga e tomou o Cytotec ¿ medicamento para úlcera com forte incidência abortiva. ¿Tive muita cólica, mas deu tudo certo. E eu não me arrependo porque não estou pronta para ser mãe¿, afirma. Assim como boa parte das garotas e mulheres que passam pela experiência, o medo e a solidão se tornaram companhia constante. ¿Tenho medo de ter câncer, de não poder ter outros filhos, de ficar doente.¿

¿A interrupção de gravidez na adolescência e no início da juventude é fato corriqueiro para quem trabalha diretamente com as jovens¿, observa Fernando Alves, coordenador do Núcleo Educavida, ligado à Central Única de Favelas. ¿As meninas apelam para os remédios no mercado clandestino e ficam sujeitas a todo tipo de coisa. Muitas sofrem e até morrem sem nem aparecerem nos registros porque são pobres.¿

Apesar de contar com dados apenas do sistema público, os relatórios obtidos pelo Correio podem servir como base da realidade da gravidez e aborto entre adolescentes e jovens em Brasília e nas regiões administrativas. Nada menos que 97% de todos os partos de garotas com até 19 anos são feitos nos hospitais públicos. A explicação, de acordo com o documento do governo, está no fato de nem todos os planos de saúde autorizarem partos na adolescência. Por isso, mesmo jovens de classes mais altas recorrem aos hospitais públicos.

Em 2002, um questionário chamado A voz dos adolescentes, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef), constatou que 28,8% das entrevistadas que haviam ficado grávidas não tiveram o filho. Aplicada em 5.280 meninos e meninas com idades dentre 12 e 17 anos, a pesquisa representou um total de 20,7 milhões de indivíduos incluídos nessa faixa etária.

No Brasil, faltam estudos sobre abortos em jovens. ¿A atividade científica não é protegida no Brasil e o Ministério Público pode obrigar o cientista a entregar as fontes e colocar em risco as meninas e mulheres que optaram por não levar a gravidez adiante¿, observa Débora Diniz, professora de antropologia da UnB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. Ela é uma das maiores estudiosas do tema no Brasil e defende a descriminalização da prática como forma de salvar vidas.

-------------------------------------------------------------------------------- DEPOIMENTO `Nem cogitei ter o filho¿

¿Tinha só 16 anos e nem cogitei a possibilidade de ter o filho. A decisão foi tomada só por mim porque acredito realmente que ninguém pode interferir na escolha da mulher. Tanto que só avisei a minha melhor amiga, minha irmã e o meu namorado na época. Para mim é claro: já que tinha sido uma besteira que eu fiz, eu é que tinha que resolver. Talvez se eu tivesse falado com a minha mãe e meu pai teria sido mais tranquilo.

O primeiro problema foi arrumar R$ 300 para comprar o remédio. Para uma menina de 16 anos, foi necessário um mês para juntar o dinheiro. No dia que eu consegui pegar o remédio, já estava com dois meses e meio. Tive que usar quatro remédios. Senti muita cólica. Foram seis horas de muita dor, mas eu estava tranquila porque já tinha tomado a decisão havia muito tempo.

Mas, ao contrário do que eu já tinha ouvido de outras pessoas, a minha cólica não passou totalmente em nenhum momento. Eu descobri que algo tinha dado errado porque uma semana depois ainda estava sentindo dor, sem quase conseguir sair da cama. Nessa hora eu decidi ir ao hospital. Mandei uma mensagem de texto falando com minha médica que era urgente. Se não tivesse falado com ela, poderia ter morrido. Ela me alertou que era um risco e que poderia ter ficado com sequelas.

O tratamento dentro do hospital particular foi ótimo, parecia até que era legalizado. Tomei a decisão certa. Fiquei grávida na mesma época que uma amiga. Hoje, ela tem um filho de 5 anos. Eu não poderia.¿

-------------------------------------------------------------------------------- Paula*, 22 anos, universitária

-------------------------------------------------------------------------------- O que diz a lei Até 3 anos de cadeia

De acordo com o artigo 124 do Código Penal Brasileiro, de 1940, provocar aborto em si mesmo ou consentir que outra pessoa provoque a interrupção da gravidez é crime. A pena para a mulher varia de um a três anos de cadeia. O médico que realiza o procedimento com a permissão do paciente pode ser punido com a detenção de um a quatro anos, de acordo com o artigo 126. Já o artigo 125 pune a pessoa que provoca aborto em outra sem o consentimento a pena de três a 10 anos. No dois casos, se a gestante sofrer lesão corporal, a pena aumenta em um terço. Se ela morrer, dobra. Hoje, o aborto é legalizado apenas para casos de gravidez resultantes de estupro ou se a mulher corre risco de morte. (EK)