Título: Só 10% dos abusos denunciados
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 06/04/2008, O País, p. 3

Desde 2000, 532 crianças morreram por violência doméstica

SÃO PAULO. A violência doméstica é mesmo uma causa grave no índice de mortes de crianças e de violência, ainda que subnotificada às autoridades, de acordo com o Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), da USP. A entidade acompanha as notificações de casos de abusos sofridos por crianças em todo o país usando fontes diferentes, como centros sociais, conselhos tutelares e a Justiça. Entre 2000 e 2007, o Lacri contabilizou 532 mortes de crianças e adolescentes em conseqüência da violência doméstica.

De acordo com a pesquisa "A ponta do iceberg", realizada pelo laboratório com dados de 1996 a 2007, apenas 10% dos casos de abusos físicos e psicológicos contra as crianças são denunciados. Segundo os pesquisadores, em todos esses anos foram notificados 159.754 casos de violência doméstica. A maioria, 65.669, é de negligência. A violência física vem em segundo lugar, com 49.481 casos, seguida de violência psicológica (26.590) e de violência sexual, com 17.482 casos.

A agressão contra a criança dentro de casa choca a sociedade porque o lar é onde se espera que ela tenha maior segurança. Além disso, quando as pessoas vêem um caso, mesmo que de suposto atentado dos pais contra os filhos, como é o caso da menina Isabella - em que o pai, Alexandre Nardoni, é investigado -, isso pode "acordar os fantasmas adormecidos". Segundo o psiquiatra Içami Tiba, há mais pessoas com medo de cometer violências que acabem em tragédias do que se pensa.

- É preciso atacar esses fantasmas antes que eles se tornem "pessoas" - afirma o psiquiatra, para quem bater nos filhos, hoje, é sinal de incompetência do educador: - A pessoa bate porque perde a cabeça. Quem perde o controle não pode educar. A educação é um projeto racional.

Para Tiba, as condições de estresse do mundo atual têm aumentado os casos de violência contra a criança, mas é importante lembrar que a violência contra a mulher e a criança sempre existiu dentro de casa e em todas as camadas sociais.

- As drogas, o álcool, isso só facilita o crime. As pessoas tramam coisas, mas não realizam. Mas, com as drogas, podem realizar. Como alguém que pensa em se matar e, se estiver drogado, se mata.

O psiquiatra relançou seu livro "Quem ama educa", com destaque para a ética:

- Ensinar ética para a criança é ensinar a respeitar os pais. Uma criança de 3 anos quer fazer o que o pai faz. Ele chega cansado do trabalho e não pode estar cansado, tem de brincar. Então, brinca mal e porcamente. Respeitar o outro é ética familiar. Hoje os pais estão pagando dívida para os filhos, não estão educando.

O psiquiatra aconselha pais a evitarem a agressão

Içami Tiba fala dos riscos de provocar o pai a tomar atitudes em relação ao filho em um momento inoportuno. Ele fala que as mães devem ter cuidado.

- O pai chega cansado, nervoso. A mãe cobra dele uma atitude: "Olha o que o seu filho fez!". Ele já vai e bate. Descarrega toda a agressividade do dia na criança.

O psiquiatra aconselha os pais a evitarem a agressão e a não repreenderem os filhos quando estiverem irritados demais. É melhor deixar a bronca para outro momento:

- Não pode bater. Nunca. Está nervoso? Vá dar uma relaxada. Mas sem beber. Beber libera a agressividade.

Muitos pais tornam-se ex-pais na separação

Analisando a comoção causada com a suspeita de que o casal Nardoni possa ter sido responsável pela morte de Isabella, o psiquiatra fez algumas considerações.

- O homem mais primitivo é mais "macho" do que pai. A tendência é defender a mulher. Já a mulher jurássica quer defender os filhos. Ela é mais mãe do que "fêmea". Se ela for uma pessoa desequilibrada, é mobilizada cegamente em defesa dos filhos. Ainda falando em hipótese, um homem desequilibrado pode matar a criança. Mas estamos falando em hipótese, e imaginando um casal que seria altamente desequilibrado. Mas e a madrasta, então, é tão má?

- As madrastas não são tão más. Há muito mais casos de pais mal resolvidos, de ex-pais - diz ele.

Ex-pais, segundo Tiba, são ex-maridos que, ao perderem o vínculo com as mulheres, perdem também a ligação com as crianças. E, mesmo que esse vínculo seja mantido, as relações do pai mal resolvido entre as duas famílias é bastante tensa e ruim, com problemas de horário destinado a ficar com os filhos e com o dinheiro da pensão.