Título: A cada dez horas, uma criança é assassinada
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 06/04/2008, O País, p. 3

Ministério da Saúde contabiliza, em seis anos, 5.049 mortes de meninos e meninas de até 14 anos

Uma criança é assassinada a cada dez horas no Brasil. Em seis anos, o Ministério da Saúde registrou 5.049 homicídios de meninos e meninas com idades até 14 anos. Os números foram levantados pelo GLOBO na base de dados do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) e correspondem aos seis últimos anos divulgados pelo governo, entre 2000 e 2005.

A pequena Isabella de Oliveira Nardoni, morta aos 5 anos, está na faixa mais atingida pelo crime: a de crianças entre 5 e 14 anos. Em 2005, por exemplo, 662 vítimas nessa faixa de idade foram mortas por agressão. Mas bebês de até 1 ano não escapam da brutalidade: só em 2002, foram assassinados 90.

Jogada pela janela do apartamento do pai, Alexandre Alves Nardoni, Isabella comoveu o país. Sua morte ainda é um mistério. Nardoni e sua mulher, Anna Carolina Trota Jatobá, estão presos sob suspeita do crime. No ano passado, João Hélio Fernandes Vieites, aos 6 anos, morreu arrastado pelos ladrões do carro de sua mãe. Eles levaram o veículo, e o menino estava preso ao cinto de segurança. A agonia do garoto não os deteve. Também não deteve a mãe adotiva Sílvia Calabresi o olhar de pavor da menina L., de 12 anos, amordaçada enquanto era torturada por ela em Goiânia.

Especialistas afirmam que, diante desses crimes, os adultos temem até não terem sido amados quando pequenos e perdem a crença na Humanidade. Se nem a criança é sagrada, o que será?

- Ver uma criança assassinada é a experiência mais terrível que existe, porque fala do respeito que os adultos devem às crianças. A criança é sagrada, a criança é tabu. E o tabu nos protege. A gente tem limite para a maldade. Mas veja a morte de João Hélio, por exemplo, quando nem a criança impediu a fuga, o crime que já estava em andamento - afirma o psicanalista Mário Eduardo Pereira, coordenador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Segundo Pereira, esses crimes desafiam as crenças da sociedade:

- Os próprios laços sociais ficam em risco, a crença na Humanidade. Ficamos com medo de não termos sido amados quando crianças, de não termos sido bem-vindos. Por outro lado, vemos que nem a criança está acima da nossa maldade e nem sequer a família e o lar são seguros.

A pesquisadora Maria Fernanda Tourinho Peres, do NEV (Núcleo de Estudos da Violência, da USP), analisou o crescimento da taxa de homicídios entre crianças e adolescentes até 19 anos de 1980 a 2002. Ela aponta para algo que a sociedade sempre teme ver e ouvir:

- Enquanto na faixa entre 15 e 19 anos o homicídio era cometido com arma de fogo, quanto menor a idade, menor era o uso dessas armas. Na idade até 4 anos, as crianças foram mortas de outras maneiras: por sufocamento, armas brancas (facas, por exemplo), estrangulamento. Isso pode apontar que esses crimes ocorreram dentro de um contexto familiar e não nas ruas - disse a pesquisadora. - É muito chocante, mas muitos estudos mostram que é no ambiente familiar que os crimes acontecem.

Na pesquisa do NEV, a morte de crianças e adolescentes até 19 anos significou 16% do total de homicídios do país. Em 2002, o coeficiente de mortalidade por homicídios na faixa etária de 0 a 19 anos para o Brasil foi de 12,56 para cada grupo de 100 mil habitantes, acima do maior coeficiente registrado em 1980, que era o do Rio (8,83). Os números de 2002, no entanto, caíram pouco ou se estabilizaram nos últimos anos em razão da queda geral no número de homicídios, segundo Maria Fernanda.

- O número de mortes por agressão de crianças pequenas é alto, mas acaba "perdido" diante do grande número de mortes entre os jovens. É preciso prestar mais atenção a esses dados - alerta a pesquisadora.

Para o psicanalista Mário Eduardo Pereira, uma tragédia como a da pequena Isabella traz à tona a discussão oportuna sobre a violência contra a criança, mas deve-se ter cuidado:

- É muito importante este momento para fazermos uma discussão. Mas não podemos buscar um culpado a qualquer preço e muito menos uma razão para esse crime a qualquer custo, como uma doença. A pessoa que comete um crime assim eu não diria que é um doente, eu diria que o sujeito não tem mais limite - disse o psiquiatra, para quem os adultos podem se identificar com Isabella, mas também têm de analisar seu comportamento ao lidar com as crianças: - No fundo, o mais terrível é quando gente se identifica com a situação.