Título: EUA monitoraram do Brasil testes nucleares
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 06/04/2008, O País, p. 16

EUA monitoraram do Brasil testes nucleares

Livro revela que americanos mantiveram no país, à revelia do regime, aparelho que media explosões atômicas

O governo americano manteve secretamente no Brasil, em plena Guerra Fria, um equipamento capaz de monitorar explosões nucleares no mundo. O conversor de calor ¿B/20-4¿, aparelho do tamanho de uma geladeira que media o nível de gases raros, como o criptônio, em amostras atmosféricas recolhidas por aviões, estava instalado, à revelia do regime militar brasileiro, em Pernambuco, onde havia duas bases dos EUA ¿ em Recife e Fernando de Noronha.

O ¿B/20-4¿ é uma das revelações do livro ¿O grande irmão¿ (Editora Record), que chega às livrarias esta semana. Escrito pelo professor de História Carlos Fico, da UFRJ, o livro oferece uma rigorosa narrativa, baseada em documentos oficiais, sobre episódios das relações entre os governos americano e brasileiro, do golpe de 1964 ao governo Medici.

Autor analisou mais de 15 mil documentos nos EUA

Em três viagens aos EUA, entre 2004 e 2006, Fico pesquisou mais de 15 mil documentos, dos quais fotografou 5 mil. Um deles é um telegrama secreto do então embaixador americano, John W. Tuthill, em 27 de dezembro de 1968, no qual alertou ao Departamento de Estado que ¿as atuais autoridades da Força Aérea Brasileira não estão instruídas sobre a verdadeira natureza da atual atividade da unidade B/20-4 instalada secretamente. Nessas circunstâncias, considero que a atividade deveria ser transferida para o consulado ou, se não for possível, retirada do país¿.

Do incondicional apoio ao golpe de 64, traduzido na operação Brother Sam e no imediato reconhecimento do regime, ao recuo estratégico no fim dos anos 60, quando as notícias sobre abusos e torturas começaram a circular pelo mundo, a pesquisa de Fico disseca a postura americana com relação ao Brasil nos 60, muitas vezes marcada por arrogância e imagens estereotipadas dos brasileiros.

¿ Fui pesquisar no National Archives and Records Administration (Washington) papéis sobre a ditadura argentina. Não sabia que encontraria coisas novas sobre a relação dos EUA com o Brasil. Quando percebi isso, resolvi escrever este livro ¿ diz o autor.

No livro, que abrange os governos de Castelo Branco, Costa e Silva e Medici (correspondendo aos dos presidentes americanos John Kennedy, Lyndon Johnson e Nixon), afloram documentos que exibem a surpresa e a cautela da diplomacia americana com a violência dos militares.

¿ Procurei confrontar a leitura do senso comum segundo a qual o ¿imperialismo norte-americano¿ apoiou incondicionalmente a ¿ditadura sangüinária¿. Na verdade, não foi fácil para os americanos lidarem com as questões da repressão, especialmente a tortura ¿ afirma Fico.

Embaixador se assustou com plano para matar Lacerda

Num dos documentos, o embaixador Tuthill comunica ao Departamento de Estado, em fevereiro de 1968, que recebera informações de um assessor, Arthur Moura, sobre um suposto plano de militares radicais para assassinar o ex-governador Carlos Lacerda. Na época, quando o clima no país começava a esquentar com os protestos estudantis, Lacerda atacava o presidente Costa e Silva por não enfrentar a linha-dura militar.

Na mensagem secreta, o embaixador alertava que, se o Exército brasileiro não tivesse controle sobre os radicais para evitar ¿qualquer ação estúpida desse tipo¿, o governo americano seria obrigado e reavaliar as atitudes e políticas em relação ao Brasil: ¿Eles parecem totalmente incompetentes diante dos ataques de Lacerda, vêem seu prestígio despencar e alguns deles ¿ tenho certeza ¿ estão pensando em termos extremados¿.

Antes mesmo da descoberta do plano, a reavaliação das atitudes americanas já estava em curso. O Ato Institucional Dois (AI-2), que acabou como o pluripartidarismo no país em outubro de 1965, foi uma ducha de água fria na relação com os americanos, diz o livro. Um ano depois, ao assumir, Tuthill cortaria 2/3 do seu staff no Brasil.

A afinidade com Castelo fora substituída por uma relação formal com Costa e Silva. Os funcionários americanos viam Costa e Silva como o oposto de Castelo. O próprio Tuthill, que fora cercado por estudantes após discurso em evento na UnB, ficou surpreso com a reação violenta do governo, que invadira a universidade na mesma noite para agredir os manifestantes.

Na ocasião, registra o livro, Costa e Silva teria dito que não via os empréstimos americanos como ajuda, mas negócio, já que o Brasil pagava juros, embora o embaixador o alertasse de que os termos dos créditos eram generosos. O marechal chegou a intimidar o embaixador, garantindo que recebera ofertas de empréstimos do bloco soviético, ¿mas amenizou a insinuação, dizendo que não via chance de ter um relacionamento humano com os comunistas¿.

Acordo da 2ª Guerra permitiu bases americanas

Na pesquisa, Fico descobriu que as atividades militares dos EUA no Brasil não se encerraram com o fim da Segunda Guerra. Segundo o livro, uma comissão do Senado americano, que investigava em 1971 os programas militares e de segurança executados em outros países, questionou a razão de um acordo autorizando o uso de bases aéreas e a realização de missões navais no Brasil ainda ser secreto.

O acordo, renovado em 1962 pela delegação americana da Comissão Mista Militar Brasil-EUA, permitia o uso livre de dez bases aéreas por aeronaves e pessoal. Os americanos tinham interesse especial de testar o alcance de mísseis lançados em teste a partir de bases americanas. Mas o governo brasileiro não estava satisfeito com as contrapartidas e impôs exigências em negociações secretas que se arrastaram no fim dos anos 60.

Em 1968, preocupado, Tuthill recomendou a seu governo que removesse de uma dessas bases o equipamento conhecido pelo código ¿B/20-4¿ : ¿Considero que uma tentativa, neste momento, de explicar a presença ou o propósito da unidade às autoridades da Força Aérea Brasileira, a fim de obter um adiamento de sua remoção, seria prejudicial para as relações entre a Força Aérea dos Estados Unidos e a Força Aérea Brasileira¿.

Fico afirma que os militares brasileiros nunca souberam da existência do equipamento. Para ele, o B/20-4 nunca se transformou em problema efetivo porque o governo americano conseguiu ocultá-lo do regime militar brasileiro. ¿Tal atitude arrogante apenas nos diz um pouco mais sobre quão livremente Washington dispunha de seu poderio durante a Guerra Fria¿, escreveu o professor da UFRJ.

EUA COGITARAM COBRAR DO BRASIL CUSTOS DE APOIO AO GOLPE DE 64 na página 18