Título: A caixa-preta da Saúde
Autor: Merola, Ediane; Autran, Paula
Fonte: O Globo, 04/04/2008, Rio, p. 14

Sem saber quantos médicos têm, secretarias ignoram déficit de profissionais para combater dengue.

Aão alardeada falta de médicos, que está provocando a importação de profissionais de outros estados e a exportação de pacientes, e até mesmo um pedido de ajuda à Cuba, é, na verdade, uma caixa-preta. As secretarias estaduais e municipais de Saúde não têm dados precisos sobre o problema: ou não sabem dizer quantos médicos trabalham de fato na rede ou informam não conhecer o tamanho real do déficit. Em meio à confusão de números, durante reunião extraordinária do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), ontem no Rio, foi proposta a criação de uma Força Nacional de Saúde com poder para arregimentar profissionais em todo país, nos moldes do grupo que atua na área de segurança pública.

Após a reunião, o presidente do conselho e secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, Osmar Terra, disse que todos os estados brasileiros mandarão pelo menos dois pediatras para ajudar o Rio no combate à epidemia de dengue. Segundo ele, já está garantido o envio de cem médicos, mas o número deverá chegar aos 150 pedidos pelo secretário estadual de Saúde, Sérgio Côrtes. Os primeiros desembarcam no domingo.

Para Cesar, falta de médicos é pontual

O quadro de médicos da rede pública do Rio é uma incógnita. O prefeito Cesar Maia afirma que a rede municipal conta com 5.058 profissionais na folha de pagamento, sendo 1.410 pediatras, para cerca de 180 unidades de saúde. Fora 1.300 profissionais federais que dão expediente em hospitais municipalizados - dos quais não se sabe quantos são clínicos e quantos pediatras, as duas especialidades mais requisitadas no momento. O déficit, segundo o município, é de 500 profissionais. O prefeito lembra que há médicos de férias e licença médica. Ele considera a falta de médicos "pontual":

- O déficit que ocorre é pontual até o concurso. Nesse intervalo, ele existe em todas as categorias e não apenas na dos médicos. Contrata-se profissionais por tempo determinado até o concurso seguinte - disse ontem. - E só se pode medir adequadamente o déficit com base em um padrão de produtividade que oscila de unidade para unidade.

Já a Secretaria estadual de Saúde informa não ter como fornecer o número total de profissionais que atuam em suas 36 unidades, mas contabiliza 2.081 clínicos gerais e 932 pediatras. Mas o secretário Sérgio Côrtes explica que, durante uma epidemia, como a de dengue, fica difícil fazer uma estimativa do déficit real de médicos.

- O que a gente está vivendo é uma epidemia. Isto é diferente. Todos esses pontos são pontos novos - completa Cortes, fazendo referência aos novos leitos abertos para atender aos pacientes, inclusive as tendas de hidratação.

Mas, apesar de a prefeitura afirmar não ter médicos suficientes para manter os postos de saúde funcionando nos fins de semana, o Rio, segundo o Conselho Regional de Medicina (Cremerj), tem o maior contingente de médicos do país, ficando atrás apenas de Brasília: 44.980 médicos, 71% dos quais com algum vínculo com a rede pública de saúde. Do total, cerca de seis mil são pediatras, três mil deles em atividade no município. Já de acordo com as contas da a Sociedade de Pediatria do Rio, haveria sete mil pediatras no estado.

A presidente do Cremerj, Márcia Rosa de Araújo, afirma que 62% dos profissionais que entram na rede pública acabam abandonando a função.

- A importação de médicos é uma medida desrespeitosa com nossos profissionais. Eles ganham aproximadamente R$1,3 mil por mês, com gratificações que não serão incorporadas, enquanto o estado está oferecendo R$1.000 por plantão de 24 horas para os profissionais que vêm de fora - disse Márcia. - Se oferecessem as vagas para os profissionais daqui, ainda economizariam em hospedagem e transporte.

Presidente da Comissão de Saúde da Câmara, o vereador Carlos Eduardo (PSB) disse que o déficit de médicos é um problema crônico e que falta transparência na divulgação dos dados.

- Já fiz inúmeros requerimentos solicitando esses dados, mas sempre recebo respostas evasivas - criticou o parlamentar.

Carlos Eduardo vai entrar hoje com uma representação no Ministério Público federal solicitando a abertura de um inquérito civil público contra a prefeitura do Rio, pelo não cumprimento da resolução 100 do Cremerj. A resolução determina que os hospitais de emergência, de nível 4, como Miguel Couto, Souza Aguiar, Lourenço Jorge e Salgado Filho tenham seis clínicos e cinco pediatras por turno de plantão. De acordo com ele, o déficit nesses hospitais é de pelo menos 50%.

- Enquanto o Miguel Couto e o Salgado Filho têm três clínicos e três pediatras por plantão, o Souza Aguiar tem três três clínicos e dois pediatras, e o Lourenço Jorge, dois de cada - denunciou.

A Defensoria Pública da União entrou ontem com pedido de liminar na 18ª Vara Federal para garantir que os médicos do Rio e dos demais estados que aderirem ao pedido de reforço para trabalhar no combate à dengue ganhem o mesmo pelo trabalho nos plantões. De acordo com a Secretaria estadual de Saúde, o médico de fora receberá R$1 mil para trabalhar num plantão de 24 horas, enquanto o do Rio, R$800. Nos plantões de 12 horas, os de fora ganharão R$500 e os do Rio, R$400. Para o defensor público federal André Ordacgy, autor da ação, a diferença salarial fere o princípio da isonomia e, além disso, desestimula o profissional local.

O defensor lembra que o Cremerj tem uma lista com mais de 150 clínicos e pediatras interessados em trabalhar no mutirão, mas eles querem receber o mesmo valor que será pago aos médicos recrutados em outros estados:

- O objetivo da liminar é estimular o médico do Rio para que ele aceite a convocação feita pelo estado. Isso significaria uma economia, pois o governo terá que pagar transporte e diária para os profissionais de fora.

Segundo a Secretaria estadual de Saúde, quem vem de outros estados receberá mais, pois ao atender ao apelo do Rio também terá perdas, como ficar longe da família. Atualmente, um médico da rede estadual de saúde recebe R$3 mil por mês para dar um plantão de 24 horas por semana, e R$1,5 mil para dar um plantão por semana de 12 horas.

Os profissionais de outros estados que vierem reforçar a equipe do Rio continuarão recebendo seus salários normalmente. Eles terão direito ainda a passagem aérea e hospedagem. Ontem, a TAM se dispôs a pagar o transporte destes médicos. Segundo o estado, a hospedagem será paga pelo governo, que está à procura de instalações adequadas.