Título: Mais um vizinho
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 04/04/2008, Economia, p. 24

O candidato paraguaio Fernando Lugo lidera as pesquisas, e as eleições serão daqui a semanas. O PT o apóia, e ele, ao sair do Palácio do Planalto, disse que o presidente Lula admitiu rever o tratado de Itaipu. Lugo fez toda a sua campanha batendo numa tecla: "são 34 anos de espoliação, engano e injustiça em Itaipu". Segundo o candidato, o seu governo vai lutar pela soberania do Paraguai sobre a hidrelétrica.

Lugo se reuniu com Lula anteontem. O Planalto nega que o presidente tenha admitido rever o tratado, mas o candidato paraguaio saiu exibindo esse trunfo. O Brasil depende da energia de Itaipu, que fornece 20% do consumo nacional. Reabrir o contrato já consolidado é iniciar um processo de evolução imprevisível.

Ao longo da campanha, esse foi o ponto principal que o fez mobilizar a população paraguaia. Logo após se lançar candidato, ele disse: "O presidente Lula tinha dito que o Brasil não vai se desenvolver às custas de um país pobre. Sem dúvida, a realidade da Itaipu Binacional é que se tirou do povo paraguaio a sua soberania." Em outro momento, disse que "se Venezuela, Chile, Panamá e Bolívia conseguiram recuperar sua soberania sobre o petróleo, o cobre, o canal e o gás natural, por que não podemos recuperar nossa soberania sobre Itaipu?"

Fernando Lugo coloca a questão nestes termos, comparando ao caso da Bolívia com o gás. E tira proveito das contradições do presidente Lula naquele episódio. Os casos não se parecem. A Bolívia ocupou militarmente refinarias brasileiras. Não precisava disso, bastava dizer que queria comprar. Mas o gás explorado pela Petrobras nos campos de San Antonio e San Alberto sempre foi da Bolívia, ninguém jamais discutiu, o que o Brasil queria era respeito aos contratos assinados. Já em Itaipu o que há é uma empresa binacional em águas compartilhadas. Ela é dos dois países.

Lugo afirma que o Brasil paga pouco pela energia, e o país é obrigado a vender só para cá. A realidade é um pouco diferente. Itaipu foi construída com empréstimo. De capital próprio, cada parceiro teria que colocar US$50 milhões. O Paraguai não tinha a parte dele e pegou o dinheiro no Banco do Brasil. Para captar os vultosos empréstimos internacionais, o Tesouro brasileiro é que teve de avalizar.

Eram os anos 70. O azar foi este. Em 1979, os Estados Unidos entraram em crise e os juros internacionais dispararam ao nível de 20% ao ano. O custo da construção foi de US$12 bilhões, mas a dívida inicial virou uma bola-de-neve pela contratação de novos empréstimos para pagar os antigos, que é como se fazia naqueles aflitivos anos 80. No final, a dívida da usina ficou em US$26,9 bilhões. Como entre o começo das obras e a primeira turbina ser acionada passou-se uma década, só em 1984 Itaipu teve alguma receita para começar a pagar a dívida da construção. Hoje, muito já se pagou, mas a empresa ainda deve US$18,7 bilhões, e só estará quitada em 2023. Portanto, a maior parte da receita da empresa é para pagar a dívida, mas a vantagem é que ela paga com recursos próprios, sem nada pedir aos sócios. Por causa do pagamento dessa dívida, que é decrescente, o Paraguai recebe de cessão da energia e de royalties US$350 milhões. Além disso, a empresa faz investimentos socioambientais de US$30 milhões, metade em cada lado da fronteira. Tem ainda a vantagem, pelo uso do que eles chamam de energia excedente, de ter uma energia que custa mais barato para o consumidor paraguaio do que para o consumidor brasileiro. A empresa, que, na verdade, está se pagando e que nada pediu aos sócios, a não ser o aporte inicial, tem o valor de mercado de US$60 bilhões, seis vezes o PIB paraguaio.

Pelo tratado, de fato, o Paraguai não pode vender para um terceiro país. Mesmo se pudesse, não teria linha de transmissão. Essa é a mesma cláusula que está em outra hidrelétrica binacional que o país tem com a Argentina, a Yaciretá, bem menor que Itaipu.

Fernando Lugo já disse que, se não conseguir do presidente Lula a reabertura da negociação do tratado de Itaipu, pode ir à Corte de Haia. Em março do ano passado, afirmou que "historicamente o Brasil tem roubado o Paraguai". Ele acha que o país deveria receber US$1,8 bilhão pela energia e que, ao receber menos, está subsidiando a indústria paulista. Na verdade, o cálculo que faz é como se a empresa não tivesse uma dívida para pagar. Ao tratar do assunto durante a campanha, promete ao povo que, se o Brasil pagar o preço justo, poderá haver mais emprego, os pobres terão casas, os aposentados terão aumentos. Todo o paraíso é prometido se o país que "explora" os paraguaios parar de explorar.

O jornal "ABC Color" é que mais abraçou esta campanha e, em seus editoriais, chama o Brasil de "imperialista" e "explorador". O tom da campanha foi este, tanto que os outros candidatos tiveram também que ir nessa onda. A posse do novo presidente, seja quem for, vai criar esta expectativa de que o Brasil pague mais pela energia.

A contabilidade de Itaipu é confusa. Teoricamente o Paraguai recebe US$2,81 o MWH pela energia, mas o custo da energia para a Eletrobrás é de US$45,31 o megawatt/hora, mais do que o consórcio que fará Santo Antonio aceita receber. O Brasil tem que se preparar muito bem para enfrentar o que vem pela frente, sem cair no paternalismo tão comum no atual governo.