Título: Sindicatos querem é botar o dedo na bolada
Autor: Galhardo, Ricardo
Fonte: O Globo, 06/04/2008, O País, p. 21
Ex-ministro do Trabalho diz que imposto sem fiscalização do TCU é inconstitucional e compara Lula a Getulio
Com a experiência de quem por quase quatro décadas advogou para sindicatos, inclusive o comandado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho Almir Pazzianotto considera inconstitucional a manutenção do imposto sindical sem a fiscalização do Tribunal de Contas da União, como sancionou Lula semana passada. Sexta-feira, em seu escritório em São Paulo, Pazzianotto lembrou Getulio Vargas, o criador do sindicalismo brasileiro: "Ele não queria sindicatos autônomos, queria comitês eleitorais". E o comparou ao atual presidente: "Lula tem um projeto político tão extenso que não causaria estranheza pensar em terceiro mandato".
Ricardo Galhardo
Que conseqüências o veto do presidente Lula à fiscalização dos sindicatos pelo TCU pode ter nas relações trabalhistas?
ALMIR PAZZIANOTTO: Nenhuma, porque essas contas nunca foram fiscalizadas. Durante anos o Ministério do Trabalho teve uma comissão de fiscalização, com o objetivo de auditar o uso do imposto sindical. Mas isso só era usado contra os sindicatos inimigos, principalmente durante o regime militar. A Constituição de 1988 proibiu a interferência do Estado na organização sindical. Se não há fiscalização, como saber se o dinheiro foi aplicado ou não? Os conselhos fiscais dos sindicatos não fiscalizam absolutamente nada, apesar do nome. Não há notícia de que algum dia um conselho fiscal tenha impugnado algum gasto. Perdemos uma grande chance de modernizar a estrutura sindical.
Existem outros meios de fiscalização?
PAZZIANOTTO: Já que o dinheiro é considerado uma contribuição parafiscal, nada mais correto que o Tribunal de Contas fiscalizar. É dinheiro público. É recolhido sem que o trabalhador possa se opor. No mínimo deveria haver fiscalização para saber se o dinheiro está sendo gasto de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Alguns sindicatos argumentam que seria uma interferência do Estado, proibida pela Constituição.
PAZZIANOTTO: Não estamos falando de fiscalizar as mensalidades pagas voluntariamente pelos associados, mas de um imposto pago compulsoriamente.
A existência do imposto configura uma interferência do Estado, já que é o governo quem recolhe e distribui o dinheiro?
PAZZIANOTTO: É, porque o sindicato é uma pessoa jurídica de direito privado. Você não vai encontrar nenhum outro exemplo no Brasil de alguma entidade nesta situação que receba uma contribuição que não pode ser recusada pelos integrantes da categoria profissional.
Então o imposto é ilegal?
PAZZIANOTTO: A Constituição diz que é plena a liberdade de associação para fins lícitos. Mas ela também diz que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer em alguma associação. Se alguém opta pela não associação, opta pelo não pagamento. Muitas vezes é a obrigatoriedade do pagamento que afasta o cidadão do sindicato. Muitas vezes o sindicato é mais útil ao dirigente do que aos trabalhadores. Um reflexo disso é o afastamento da juventude.
O imposto é passível de questionamento jurídico?
PAZZIANOTTO: Não sei o que faz o Ministério Público Federal, uma entidade muito combativa, que ainda não perpetrou, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), uma ação que acabe com a obrigatoriedade do imposto sindical.
A legalização das centrais com manutenção do imposto sem fiscalização serve de instrumento para que os atuais dirigentes se perpetuem?
PAZZIANOTTO: Esse instrumento já existe desde a criação da CLT. A grande luta hoje pelo registro de um novo sindicato é pelo dinheiro do imposto sindical. Não é que determinado sindicato resolveu sair em defesa dos trabalhadores da indústria de roupas brancas, por exemplo. O fenômeno é: olha, temos uma bolada anualmente, vamos botar o dedo. O imposto se tornou fonte de receita para determinados dirigentes sindicais.
Isso significa que há uma indústria de sindicatos no Brasil?
PAZZIANOTTO: Se a situação dos trabalhadores melhorasse em função do número de sindicatos, a classe trabalhadora mais bem servida do mundo seria a nossa. Não teríamos desemprego, informalidade, condições degradantes. O número de sindicatos no Brasil dá idéia de uma cobertura ampla e eficiente, mas não é o que se vê. Na Alemanha existem 20 sindicatos. No Brasil, 20 mil.
Com a legalização das centrais e manutenção do imposto, Lula conseguiu unificar o movimento sindical em torno de si?
PAZZIANOTTO: Getulio Vargas já era ditador quando promulgou a CLT, em 39. Ele não queria um movimento sindical autônomo, mas que os sindicatos fossem seus comitês eleitorais. Só isso explica que, confinado em São Borja desde que foi deposto em 1945, tenha sido eleito deputado constituinte e senador com mais de um milhão de votos sem sair de lá, com ampla votação inclusive em São Paulo, que ele havia derrotado em 1932 (na revolução constitucionalista).
Lula pode ter se inspirado em Getúlio ao sancionar esta lei?
PAZZIANOTTO: Não podemos nos esquecer da origem de Lula. Ele era um sindicalista brilhante, combativo, independente, que enfrentou o governo militar e derrotou o peleguismo. Getulio teve origem completamente diferente, filho de estancieiros, que teve uma carreira política vitoriosa desde o início, foi deputado, governador do Rio Grande do Sul, liderou uma revolução à frente de militares. Isso os torna pessoas muito diferentes, além do que Getulio tinha certo refinamento cultural e Lula é movido pela intuição. Mas creio que são raros os que ocuparam a Presidência que queiram deixar voluntariamente o poder. Lula está envolvido por um projeto político tão extenso que não causaria estranheza se ele pensasse remotamente em um terceiro mandato.