Título: Segregação presente, mas sob outra roupagem
Autor: Martins, Marília
Fonte: O Globo, 04/04/2008, O Mundo, p. 29
Acadêmicos ressaltam que leis mudaram, mas minorias ainda sofrem desvantagens diante dos brancos.
NOVA YORK. Quando alguém pergunta sobre as conquistas e as frustrações do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a professora Lillian Williams costuma responder citando sua própria trajetória pessoal como exemplo. Ela é hoje coordenadora de estudos afro-americanos na Universidade Estadual de Nova York, em Buffalo. Nos anos 60, a área de estudos afro-americanos simplesmente não existia e o posto de pesquisadora universitária era praticamente impossível de ser alcançado por mulheres negras.
Lillian Williams reconhece que, nos últimos 40 anos, a sociedade americana mudou radicalmente. Mas a professora não considera que a pauta de reivindicações do movimento pelos direitos civis esteja esgotada. Ao contrário, para ela ainda há muito por fazer para reduzir as tremendas desigualdades raciais que ainda persistem nos EUA. Segundo a acadêmica, nestes 40 anos muita coisa mudou, como o surgimento de uma classe média negra, que antes não existia. Ela cita as leis sobre os direitos civis, de 1964, e sobre a garantia do direito de voto, de 1965, como fundamentais para que estas mudanças acontecessem, assim como as ações afirmativas dos anos 70, que garantiram, por exemplo, cotas para professores e estudantes de minorias raciais nas universidades. Apesar disso, a acadêmica mantém suas ressalvas.
¿ Mas mesmo assim, 40 anos depois do assassinato de Luther King, não se pode dizer que os EUA sejam uma democracia racial. Não é verdade. As escolas de ensino fundamental, por exemplo, tornaram-se ainda mais segregacionistas, e as oportunidades em termos de trabalho, educação e saúde não são iguais. As minorias raciais ainda são segregadas economicamente ¿ analisa ela. ¿ Chegamos a um ponto em que não se trata mais de conquistar direitos legais, e sim de garantir a implementação dos direitos existentes. O conflito agora é econômico, e nesse sentido se pode pensar numa coalizão ampla de todas as minorias.
Bairros pobres ainda são guetos para moradores
Um dos aspectos que chamam a atenção é o fato de as escolas públicas fundamentais serem, nos EUA de hoje, mais segregacionistas que as dos anos 60. Lillian explica que o sistema escolar público americano divide as escolas de acordo com a vizinhança: escolas de bairros negros têm hoje apenas alunos negros, e assim por diante. Há pouca mistura de alunos de raças diferentes na mesma classe porque as cidades americanas têm divisões raciais que são superpostas a divisões geográficas. Por isso, os bairros pobres continuam a ser guetos para seus moradores, sem oportunidades de educação e de trabalho que se equiparem aos bairros ricos, onde mora a maioria branca. O mesmo acontece com as universidades.
Para a professora, as cotas facilitaram o acesso de alunos negros aos cursos universitários, mas não resolveram o problema da discriminação. Ela explica que as universidades estaduais têm menos verbas para ensino do que as ricas universidades particulares, ainda redutos da elite branca.
¿ É verdade que universidades ricas, como Harvard, têm programas de inclusão social e de diversificação do seu quadro docente, mas os centros de decisão ainda permanecem nas mãos de uma elite branca, e por isso persistem as desigualdades de oportunidades ¿ critica Lillian Williams. ¿ Outra vez voltamos ao ponto que é central no debate racial de hoje nos EUA: é preciso garantir a todos oportunidades iguais de educação e de trabalho, e nisto os EUA ainda estão longe de ser uma democracia racial.
Como a pesquisadora, muitos lembram que o movimento dos direitos civis nos EUA ganhou uma outra realidade com o aparecimento, nos anos 90, de uma alta classe média negra, antes inexistente. Segundo o Censo americano, 25% dos domicílios de famílias negras são hoje de classe média, mas nos números que revelam a ascensão social dos negros ainda há forte índice de concentração: apenas 5% dos negros americanos têm renda superior à de 85% dos domicílios de famílias brancas. Nomes como o da apresentadora de TV Oprah Winfrey ou o do primeiro CEO negro americano, Stanley O¿Neal, da Merrill Lynch, tornaram-se símbolos desta nova possibilidade de ascensão social, que antes não havia.
Timothy Nelson, da Universidade de Harvard, considera que a abertura das universidades para os negros teve um papel importante nisso, permitindo a formação de um contingente de profissionais liberais que hoje disputa postos de trabalho com a elite branca. Mas ele ressalta que ainda resta um largo contingente de negros, hispânicos, asiáticos e outras minorias raciais que permanecem à margem da sociedade, vivendo segregados em bairros que se transformam em guetos sociais.
¿ É possível pensar, hoje, em pontos comuns que unem todas essas minorias socialmente marginalizadas. Mas, para que esta realidade mude, seria preciso que houvesse uma nova maioria no poder interessada em priorizar a redução das desigualdades sociais. Num momento em que a economia americana caminha para a recessão, esta promessa parece difícil de ser alcançada ¿ diz.
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