Título: Os sinais de alergia à opinião pública
Autor: Novaes, Luiz Antônio
Fonte: O Globo, 05/04/2008, Segundo Caderno, p. 1

Documento confidencial sobre a cobertura de mídia explicitava a mentalidade autoritária que cercava Lula.

A ¿Voz do Brasil¿ era vista como símbolo da Radiobrás, mas, com apenas cinco jornalistas, representava pouco numa empresa que empregava cerca de 1.100 funcionários. Em seus tempos áureos, a estatal chegara a contar com 42 emissoras, que foram minguando na exata medida em que, na década de 80, o ex-presidente José Sarney concedia, por decreto, concessões de rádio e TV para políticos-empresários ou empresários-políticos. Em janeiro de 2003, quando Bucci levou para lá profissionais de mercado e não militantes do PT, a Radiobrás ainda tinha quatro estações de rádio ¿ entre elas a mítica Rádio Nacional do Rio ¿, duas emissoras de TV e uma agência de notícias na internet: uma estrutura de comunicação nada desprezível para os defensores do aparelhamento da máquina pública.

Do bilhete à ¿Carta¿: futricas ao pé do ouvido

Sete meses depois dos bilhetinhos, Bucci constatou, já sem nenhum bom humor, que as pressões contra seu projeto não só cresciam como haviam chegado ao pé do ouvido do presidente. Seu probleminha tinha virado um problemão. Atendia pelo nome de ¿Carta crítica¿, documento confidencial sobre a cobertura de mídia, repórteres e empresários de comunicação, produzido diariamente pelo veterano jornalista e professor Bernardo Kucinski, outro antigo colaborador do PT, destinado a Lula e seu círculo mais íntimo. Sem que Bucci soubesse, pois não fazia parte do grupo que tinha acesso à ¿Carta¿, Kucinski, requisitado à USP pela Presidência da República, também alimentava o presidente com ¿caracterizações doutrinárias¿ sobre a Radiobrás, de cujo Conselho de Administração fazia parte. Numa de suas edições, lidas por Lula durante seu café da manhã, Kucinski acusava o jornalismo da Radiobrás de se omitir na cobertura da atuação de tropas brasileiras no Haiti, fazendo o jogo da oposição. Ao tomar conhecimento do ataque, Bucci achou que era hora de reagir.

Autoritarismo e alergia à opinião pública

¿Algumas das manifestações mais explícitas da mentalidade autoritária que tentou sitiar o nosso projeto entre 2003 e 2006, eu as li nas edições da `Carta crítica¿¿. Indignado com a ¿futrica¿, Bucci produziu uma devastadora análise, batizada de os sete pecados ¿capitais¿ do pensamento autoritário ou os sete ¿segredos¿ do autoritarismo de esquerda (veja quadro acima). Reproduzida no capítulo 17 do livro (¿A decupagem do sintagma obscuro¿), a peça, escrita com rigor acadêmico e exuberante ódio criativo, utiliza expressões como ¿apologia do aparelhismo¿ e ¿ódio à imprensa¿ para caracterizar o arsenal de recursos de seus adversários. ¿Como um médico-legista de crendices fossilizadas, dissequei-lhe as juntas verbais e ali identifiquei os sinais de alergia à opinião pública¿. Para quem já viu o PT se render a tanta coisa que execrava, chegou a hora, com a leitura do livro de Eugênio Bucci, de meditar sobre a acomodação de seus principais dirigentes ao processo que levou o partido a trocar a política pelo marketing e a comunicação pela propaganda. ¿É o muito novo em simbiose com o muito velho¿, diz Bucci, ao definir o fenômeno, não exclusivamente brasileiro, que mistura, em benefício dos governantes, técnicas ultramodernas de marketing com práticas patrimonialistas ainda existentes no Estado.

Cabos eleitorais disfarçados de assessores de luxo

Depois dos atritos com Dirceu e Kucinski, ¿veio junho de 2005 e com ele o horror¿, relata Bucci, referindo-se ao terremoto do mensalão, provocado pelas denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson. Na crise, segundo o livro, o desagrado com a cobertura da Radiobrás chegou ao auge. Entre dezenas de auxiliares diretos ou indiretos de Lula que foram obrigados a se demitir, a avalanche arrastou Dirceu e Gushiken. Por outras razões, Kucinski deixaria o Planalto em junho de 2006, um ano e meio depois dos desentendimentos com Bucci.

Órfão de detratores e defensores, o presidente da Radiobrás, que já colocara o cargo à disposição logo após os bilhetes-bomba de Dirceu, pensou de novo em ir embora. ¿Um sentimento me segurou (...) Eu tinha um trabalho de que teria de tomar conta, e não iria abandoná-lo às hienas, aos oportunistas reconvertidos à utilidade pública da `Voz do Brasil¿, aos cabos eleitorais transformados em assessores de luxo¿, justifica no livro. Avisou que sairia quando o primeiro mandato acabasse, mas ficou até abril de 2007, para defender, ¿não dos críticos, mas dos vermes¿, um governo que ainda considerava seu.

Pouco antes de sair, entregou ao jornalista Franklin Martins, novo secretário de Comunicação da Presidência, a quem a Radiobrás passaria a se subordinar, o projeto que gostaria de ter implantado e para o qual a estatal já estaria madura: a sua fusão com a TVE do Rio numa terceira ¿ e única ¿ empresa. Franklin Martins, segundo Bucci, aprovou a idéia. Quase um ano depois, no mês passado, ao fim de uma longa batalha entre governo e oposição, o Congresso autorizou a criação da TV Brasil, a polêmica TV pública ¿ da qual Bucci, seu primeiro inspirador, não se considera padrinho.

Entre os principais relatos feitos até agora por ex-colaboradores da administração petista, a ¿crônica de aldeia¿ de Bucci, como modestamente o trata, é o mais bem escrito, e de longe, o mais corajoso e ousado. Produto de um espírito livre que não se furta a reconhecer derrotas, dúvidas e frustrações, ¿Em Brasília, 19 horas ¿ A guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula¿ chega às livrarias com toda a pinta de clássico. No título escolhido por Mário, filho caçula que seguiu a profissão do pai, Bucci evoca o tempo em que, embalada pelo ¿Guarani¿, de Carlos Gomes, a ¿Voz do Brasil¿, encenação radiofônica do poder político, anunciava aos rincões que a noite havia chegado. Um tempo que ficou para trás, mas que resiste e luta para não ir embora.