Título: Chapa-brancas-e-vermelha
Autor: Novaes, Luiz Antônio
Fonte: O Globo, 05/04/2008, Segundo Caderno, p. 1

Eugênio Bucci revela em livro como Radiobrás foi patrulhada no primeiro mandato de Lula.

Ojornalista Eugênio Bucci presidia a Radiobrás havia um ano e meio quando recebeu em seu gabinete um envelope branco, lacrado por um selo azul com a inscrição ¿confidencial¿. Dentro, encontrou a fotocópia de um bilhete, datilografado em papel timbrado da Presidência da República. Fora-lhe retransmitido pelo ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken, àquela altura um dos três homens fortes do governo Lula. Seu conteúdo, aperitivo das grandes revelações do livro ¿Em Brasília, 19 horas¿, que Bucci lança, na próxima sexta-feira, em São Paulo, pela editora Record, era o seguinte:

¿Prezado ministro Gushiken,

Sou total e radicalmente contrário à proposta do Bucci de não obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil. Só faltava essa. Já não basta a Radiobrás e sua `objetividade¿, que na maioria das vezes significa um misto de ingenuidade e na prática mais uma emissora de `oposição¿.¿

Duas semanas depois, outro bilhetinho-bomba, como os classifica Bucci:

¿Prezado ministro Gushiken,

Você está acompanhando os problemas da Radiobrás? As notícias da mídia e a crise com o sindicato do Chico Vigilante? Você está a par da posição pública do Eugênio pelo fim da Voz do Brasil? Você tem acompanhado o conteúdo do noticiário da Radiobrás?¿

À frente de Bucci, ¿um probleminha de nada¿

O irritado signatário das duas mensagens era um só: o ministro chefe da Casa Civil da Presidência, José Dirceu, então considerado o ¿capitão¿ do time de Lula. Era junho de 2004. Quatro meses antes, Waldomiro Diniz, ex-assessor de Dirceu, fora flagrado, em vídeo, pedindo propina para donos de bingo, no Rio, onde presidira a Loterj durante o governo Garotinho. A denúncia, embora sobre fato anterior ao mandato de Lula, foi a primeira a abalar o primeiro governo de esquerda do país. Viera a público em reportagem da revista ¿Época¿ assinada por Andrei Meirelles e Gustavo Krieger ¿ este último, conhecido repórter de Brasília que, no ano anterior, por escolha de Bucci, chefiara o departamento de jornalismo da Radiobrás.

Em seu inconfundível estilo, o ¿curto e grosso¿ recado de Dirceu tornava mais agudo o que Bucci até então chamava, ironicamente, de ¿um probleminha de nada¿: convencer os novos ocupantes do poder da necessidade de retirar a Radiobrás da trilha do chapa-branquismo em que fora jogada desde a sua fundação pela ditadura militar em 1976. Na tentativa de dar-lhe características de uma verdadeira empresa pública de comunicação, Bucci vinha enfrentando resistências de parlamentares, assessores de ministérios e funcionários da própria estatal, que atribuía aos hábitos e costumes, à força da inércia. Ao condenar o jornalismo na Radiobrás, o ministro que cuidava da articulação política revelava a Bucci, no entanto, que a cultura da propaganda e do partidarismo tingia-se de vermelho e sobrevivia no coração do governo petista. Uma herança maldita.

Informação, direito fundamental, versus propaganda

Bucci não era de oposição. Chegara ao governo como jornalista com larga experiência na chamada grande imprensa, respeitado teórico da comunicação ¿ com título de doutorado e livros publicados sobre o tema ¿, professor universitário e colaborador assíduo do PT. Fato raro entre as gerações de jornalistas que se formaram a partir da década de 80, ele era um quadro, ao mesmo tempo, do moderno jornalismo brasileiro e do partido que ajudara a fundar na juventude, quando ainda estudante da USP. Primeiro editor de ¿Teoria & debate¿, revista do PT produzida pelo diretório regional de São Paulo, participara da elaboração do programa de comunicação com que Lula enfrentara as urnas em mais de uma campanha eleitoral, inclusive na vitoriosa. A convite de Gushiken e do próprio presidente já eleito, aceitara mudar-se para Brasília.

Bucci não era ingênuo. Observador atento dos dilemas éticos da comunicação, com críticas contundentes à presença cada vez maior da publicidade nas esferas do jornalismo e da política, levara para a Radiobrás o seu pensamento de que a informação é um direito tão fundamental quanto a educação, a saúde ou a moradia. E trabalhou para que a produção dessa informação, mesmo financiada por R$95 milhões do Orçamento da União, fosse isenta e transparente. Além de dinamizar e cobrar os preceitos clássicos da objetividade jornalística, seu projeto previa o fim da transmissão obrigatória da embolarada Voz do Brasil, nascida na ditadura Vargas ¿ uma oportunidade de propaganda eleitoral gratuita até hoje adorada não só pelos governantes, mas também pelo chamado baixo clero do Congresso.