Título: Salvo-conduto para impunidade
Autor: Franco, Carlos Alberto Di
Fonte: O Globo, 07/04/2008, Opinião, p. 7

Ogoverno do presidente Lula, afirmativo nas políticas sociais e sensato na condução da economia, tropeça, mais uma vez, no comportamento ético. O episódio do dossiê contra FHC, guardadas as devidas proporções, lembra o manual de procedimentos aéticos adotados em passado não distante. A quebra do sigilo do caseiro e a ação dos aloprados na montagem do dossiê anterior, por exemplo, têm coisas que dão ao novo capítulo a sensação de novela já vista: versões sucessivas e contraditórias, transferência de responsabilidades e, ao fim e ao cabo, cinismo exemplar. Relembremos o caso.

Multiplicaram-se as versões do governo, seguindo rigorosamente o mesmo receituário das crises anteriores. Reportagem da revista "Veja", confirmando o que o jornal O "Estado de S.Paulo" já antecipara no dia 19 de fevereiro, informa que o governo preparou um dossiê, de 13 páginas, sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e da ex-primeira-dama Ruth Cardoso.

O governo, como sempre, reage com aparente indignação. A Casa Civil divulgou nota na qual ameaça processar a revista pela divulgação de dados considerados sigilosos e afirma que a revista "mente" e "manipula" informações. O texto da Casa Civil nega a existência de um dossiê contra a oposição e afirma que o trabalho feito atende a determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) e informa que abriria sindicância para apurar o vazamento das informações.

O TCU, no entanto, afirma que não pediu informações à base de dados do Planalto. O ministro da Justiça, Tarso Genro, faz que não entendeu e insiste: "Não existe dossiê. O que existe é um trabalho que está sendo feito pela Casa Civil, a pedido do TCU e na expectativa da CPI, para oferecer dados que podem ser requisitados pela CPI."

O governo arma uma estratégia para impedir a convocação da ministra Dilma Rousseff pela CPI do Cartão Corporativo. A convocação é derrotada pela maioria governista.

Reportagem do jornal "Folha de S.Paulo" afirma que a secretária-executiva da Casa Civil, Erenice Alves Guerra, montou o suposto dossiê. A Casa Civil divulga nota na qual abandona a tese de que fez um levantamento dos dados a pedido do TCU. Afirma, agora, que os dados foram pinçados de uma base de dados que está sendo digitada. Nega que Erenice tenha mandado fazer o dossiê. O ministro da Justiça, Tarso Genro, atribui o episódio a um "debate político-institucional" entre governo e oposição.

O presidente Lula, seguindo o padrão adotado em ocasiões análogas, apóia os envolvidos e atribui tudo ao ódio da oposição e ao negativismo das elites. Assim foi com os protagonistas do maior espetáculo de corrupção da História deste país. E assim será com os coadjuvantes do novo capítulo da novela aética. Surfando, tranqüilo, numa onda de 55% de aprovação, índice sem dúvida impressionante, o intuitivo presidente confia na força do seu taco. E é aí que Sua Excelência se engana e, ademais, presta imenso desserviço à democracia e à sua própria biografia.

O país, queiram ou não os seus políticos e governantes, vai ser passado a limpo. É uma questão de tempo. O Supremo Tribunal Federal (STF), integrado por magistrados competentes e com um nome a zelar, não brincará com a denúncia do procurador-geral da República contra os quadrilheiros do mensalão. Denúncia, aliás, referendada pelo brilhante relatório do ministro Joaquim Barbosa. A economia, em qualquer país, sempre teve influência significativa nos humores eleitorais. Pode ser, muitas vezes, um salvo-conduto para a impunidade. Mas tal distorção tem seu prazo de validade. Não se constrói uma grande nação de costas para a ética.

Um presidente da República com 55% de aprovação, mas leniente com casos de corrupção e tolerante com patentes desvios éticos de seus subordinados, é tão perigoso quanto a força bruta de uma tropa de choque. Se os princípios não valem, valerá a vontade do príncipe. É só uma questão de tempo.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO é diretor do Master em Jornalismo.

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