Título: O medo na rota dos navios
Autor: Cavalcanti, Leonardo
Fonte: Correio Braziliense, 04/05/2009, Brasil, p. 6

Barcos artesanais avançam mar adentro atrás de peixes cada vez mais escassos nos recifes costeiros e tripulantes relatam riscos de acidente e morte no fim da plataforma continental. Raimundo em terra firme: pescadores vão cada vez mais longe Natal ¿ Raimundo Rodrigues ainda se lembra, com assombro, do apito do navio mercante. ¿Era um som forte. Não sei a distância, mas era muito perto.¿ E se Raimundo, 54 anos, diz que era perto, era perto. Afinal, o homem sobrevive do mar desde sempre e sabe quando uma embarcação está prestes a passar por cima de outra menor. Naquela noite, no início de fevereiro, o pescador e outros três tripulantes, a bordo de um barco a motor com 7m de comprimento, estavam a 20km da costa da capital do Rio Grande do Norte. Um ponto distante para embarcações de pesca artesanal, na rota dos grandes navios comerciais que cruzam os mares brasileiros. Ali, o medo de Raimundo e de qualquer pescador se justifica, afinal a morte sempre passa por perto.

Riscos de colisão, que deveriam ser uma casualidade, são cada vez mais comuns no litoral nordestino, onde pesquisadores acreditam que a poluição, a pesca predatória e a ocupação desordenada da região têm reduzido ainda mais a quantidade de espécies de peixes na costa. Sem sinalização adequada e equipamentos, como um GPS ¿ o sistema para determinar o posicionamento a partir de satélites ¿, barcos como o tripulado por Raimundo chegam à borda da plataforma continental, que, a partir de Natal, tem menos de 25km de largura. Naquele ponto, na região conhecida por paredes ou talude, a profundidade cai de 80m a 500m rapidamente. Como as traineiras movidas a óleo diesel têm menos de 10m de comprimento, acabam não aparecendo nos radares dos navios. À noite, o risco aumenta.

¿A pesca artesanal no país não tem se desenvolvido. Com as áreas de peixes cada vez mais exauridas, as embarcações precárias correm riscos desnecessários¿, diz Jorge Lins, professor de biologia marinha da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). ¿O pescador tem nível básico e acaba sem acesso a financiamentos para melhorar a atividade pesqueira¿, completa. No Brasil, estima-se em 25 mil o número de embarcações artesanais, e outras 1,8 mil industriais. Um diagnóstico da pesca preparado por cinco pesquisadores da UFRN aponta que, nas últimas duas décadas, a produção pesqueira sofreu forte desaceleração por causa do esgotamento dos recursos nas áreas de exploração. ¿Os estoques de praticamente todas as espécies de pescado atualmente exploradas já se encontram no limite de sua capacidade sustentável ou mesmo em estado de sobrepesca¿, aponta o estudo.

Estrelas Pela legislação marítima, os pescadores artesanais têm permissão de avançar apenas até o ponto em que ainda é possível avistar trechos da costa. Sem tais referências e equipamentos, eles acabam se guiando pelas estrelas e pela posição do sol. É pouco, e os próprios pescadores sabem disso. ¿O dono do barco diz que não tem dinheiro para comprar um GPS e a gente vai pelas estrelas mesmo¿, relata o pescador José Edvaldo, 26 anos, que vive em Japaratinga (AL), a 115km de Maceió. Na última semana de fevereiro, Edvaldo e outros três tripulantes do barco, batizado de Raio, decidiram passar cinco dias no mar. Ao iniciarem o trajeto, na primeiras duas horas, foram obrigados a voltar por causa de um defeito no motor da traineira. Por sorte, estavam próximos à costa e retornaram para a terra a salvo. O barco permaneceu fundeado próximo à praia por pelo menos duas semanas até voltar a ser utilizado em alto-mar.

Entre a costa do Rio Grande do Norte e da Bahia, a Diretoria de Portos e Costas da Marinha contabilizou 27 acidentes envolvendo embarcações pesqueiras no ano passado. Apenas na costa potiguar foram 14. O levantamento ¿ feito com exclusividade para o Correio pela Comissão de Investigação e Prevenção dos Acidentes da Navegação, no Rio de Janeiro ¿ mostra que, em 2007, houve 34 ocorrências no mesmo trecho. Os dados servem apenas como parâmetro, porque muitos dos acidentes e incidentes, como o episódio relatado pelo pescador Raimundo Rodrigues, não são notificados. Um oficial militar lotado numa das capitanias do litoral nordestino diz que a fiscalização das normas e das embarcações é difícil de ser feita.

¿Sempre que uma unidade da Marinha cruza com um desses pesqueiros, determinamos que voltem para a costa, mas é complicado controlar tantos pescadores artesanais avançando mar adentro¿, diz o oficial. ¿Na maioria das vezes, os acidentes ocorrem, mas não há contabilização. Não sobra ninguém para contar a história¿, confirma outro oficial graduado. Uma das formas de o governo federal controlar o comércio marítimo é a partir do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (Preps). Barcos com menos de 10m de comprimento, entretanto, não são obrigados a participar do programa.