Título: Investigação chapa-branca
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 08/04/2008, O País, p. 4

Essa tentativa de restringir a investigação apenas ao vazamento do dossiê, e não à sua feitura, uma investigação parcial, chapa-branca, desmoralizará a Polícia Federal. O governo está apenas adiando o que parece ser inevitável: mais cedo ou mais tarde surgirá o autor do verdadeiro crime, que é quebrar o sigilo de um banco de dados do governo para organizar um dossiê contra um adversário político. Os dados sobre os gastos dos ocupantes do Palácio do Planalto não são de propriedade dos seus eventuais ocupantes, mas do Estado brasileiro. Argumentar que o crime está no vazamento das informações sigilosas, e não no seu levantamento indevido, é o mesmo raciocínio que surgiu na época da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.

A primeira versão da Caixa Econômica Federal foi de que não houvera quebra de sigilo, já que o funcionário que entrara na conta o fizera com ordens superiores e os dados eram da Caixa. Somente ao divulgá-los para a imprensa havia sido cometido um crime. Como se o presidente da Caixa e o ministro da Fazenda tivessem o direito de entrar na conta de qualquer um apenas porque, eventualmente, são os "chefes" de uma cadeia de comando de uma empresa pública. Tanto que a Procuradoria Geral da República denunciou ao STF o ex-ministro Palocci, o ex-presidente da Caixa Jorge Mattoso e o jornalista Marcelo Netto, ex-assessor de imprensa de Palocci, por quebra de sigilo.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, que de início disse que não havia razão para chamar a Polícia Federal, agora já alega que vai mandar investigar o vazamento, que é um crime, e não o dossiê, que não passa para ele de um "conceito". Como se fosse possível vazar alguma informação que não estivesse previamente disponível em alguma instância. Já há informações mais do que suficientes para que se investigue o que aconteceu no banco de dados do Palácio do Planalto.

Ou houve uma ordem de alguém graduado para que os dados sobre os gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e sua família fossem compilados, ou alguém, como estranhamente sugere a chefe do Gabinete Civil, Dilma Rousseff, talvez um hacker contratado pela oposição, invadiu os computadores do governo e de lá extraiu uma relação de dados, casualmente apenas do ex-presidente.

Só a admissão dessa hipótese, a de que os computadores do Palácio do Planalto estão vulneráveis a uma "invasão", já seria razão para uma ampla investigação, não apenas da Polícia Federal como também da Agência Brasileira de Informações (Abin).

É escandaloso que, como "capitã" do time do governo, a ministra Dilma Rousseff aceite a mera sugestão de que o sistema de dados do governo foi atacado por alguém, de dentro de sua própria equipe, ou de fora.

Seria o caso de já estar em andamento uma ampla ação governamental, esta sim para proteger a segurança nacional. Não são os gastos pessoais do presidente Lula e sua família que, revelados, deixariam a segurança nacional vulnerável, a não ser que eles sejam de tal forma escandalosos que provoquem uma revolta popular. Fora isso, nada haveria a temer.

A verdade é que o dossiê foi feito para ameaçar a oposição, e gastos que aparentemente parecem exagerados, como compra de bebidas finas ou iguarias de delicatessen, são perfeitamente explicáveis pelas necessidades de representação do cargo. Mas só ter que dar explicações já constrange as autoridades do governo anterior, e esse era o objetivo do tal dossiê.

É o caso de gastos de alguns ministros, que poderiam ser contestados se colocados fora do contexto, mas são irrelevantes, como a massagem do ex-ministro Raul Jungmann que na verdade, segundo sua explicação, é um tratamento médico. Ou será que as acupunturas no ombro do presidente Lula foram pagas do bolso dele?

Antes de esse documento com 13 páginas circular entre os políticos, já havia informações espaçadas sobre gastos de um ministro que vinha muito ao Rio supostamente para namorar, ou a compra de um pênis de borracha. A idéia de divulgar na CPI a compra de um pênis de borracha na gestão anterior foi discutida em uma reunião do comando político do governo no início de fevereiro e, segundo a versão de um ministro, divulgada na época, foi descartada pelo próprio presidente Lula, que a considerou "muito baixa".

Na verdade, o tal pênis de borracha havia sido comprado para aulas de educação sexual na rede pública, e por isso foi usado o cartão corporativo. Esses gastos, aliás, nunca se materializaram em relações oficiais, mas são pequenos exemplos que servem para mostrar como já circulavam informações teoricamente sigilosas entre os governistas, a ponto de o próprio presidente da República ter que decidir o que seria divulgado.

Todos esses relatos traduzem um enorme equívoco do governo, que trata como suas as informações sigilosas que estão sob sua guarda eventual. É uma velha mistura essa que o governo e o PT fazem entre o público e o privado; entre o público e o estatal. Agora mesmo há notícias sobre o sistema de comunicação do governo que demonstram que essa confusão sempre existiu e continua existindo.

As revelações de Eugênio Bucci sobre as pressões que o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, exercia sobre o noticiário da Radiobrás, exigindo uma lealdade aos interesses políticos do governo que não se coaduna com o espírito de uma emissora que se queria pública, são repetidas agora com a TV Brasil, que na teoria seria uma TV pública e, na prática, já se tornou uma estatal.

Só o fato de que a editora que controla os telejornais é mulher do assessor de imprensa do presidente, subordinado ao ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, já demonstra que há, se não uma linha direta com o Palácio do Planalto, pelo menos um constrangimento que o bom senso mandaria evitar.