Título: Dentro da barriga do dragão
Autor: Scofield, Gilberto
Fonte: O Globo, 10/04/2008, Opinião, p. 7

Desde que os protestos de tibetanos contra a repressão do governo da China começaram, no dia 10 de março, já telefonei para meia dúzia de pessoas do governo chinês e enviei dois fax ¿ um ao Centro Internacional de Imprensa do Ministério das Relações Exteriores e outro ao Escritório de Assuntos Estrangeiros do governo do Tibete ¿ pedindo autorização para ir à região dos protestos, sem sucesso.

Numa entrevista coletiva na Chancelaria chinesa, o porta-voz do ministério, Liu Jianchao, justificou a negativa para as autorizações alegando perigo para a integridade física dos jornalistas, ainda que profissionais de imprensa chineses da Xinhua, a agência de notícias estatal chinesa, e da CCTV, a rede de TV estatal, estejam no local fazendo reportagens como se nada estivesse acontecendo.

E não são apenas os jornalistas que estão impedidos de ir ao local. Qualquer estrangeiro, seja ele turista ou homem de negócios, tem sido barrado nos limites da região do Tibete e nas províncias onde residem pessoas de etnia tibetana, como Sichuan, Gansu ou Qinghai. As estradas estão bloqueadas com blindados, a internet e os telefones, censurados. Os monges, calados e presos nos próprios monastérios.

Impedidos de apurar no local o conflito, aos jornalistas estrangeiros resta a alternativa de recorrer a organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, ao governo tibetano no exílio, bem como a tibetanos fora da região que mantêm algum contato com parentes ou amigos que moram na área isolada. Além do governo chinês, claro, para definir, ao fim e ao cabo, o que é a notícia a ser dada.

Mais recentemente, apesar do cerco à liberdade de imprensa (nem chineses de outros jornais são autorizados a ir à região), o governo de Pequim vem iniciando um movimento de manipulação da opinião pública chinesa, através da própria imprensa estatal e da internet, em que qualifica a cobertura dos conflitos feita pela imprensa estrangeira de ¿manipuladora, injusta e mentirosa¿. E numa espécie de esforço para mostrar que não é só o governo que pensa isso, reproduz debates na rede chinesa em que os internautas condenam as matérias publicadas na mídia internacional por serem pró-Tibete.

Os chineses estão irados com os protestos tibetanos. E com razão. Afinal, só é divulgada na mídia chinesa as imagens dos tibetanos revoltados quebrando tudo o que é da etnia han chinesa (minoria na região, mas maioria na posse da riqueza local): de carros a lojas, passando pelos próprios chineses, cercados nas ruas de Lhasa por tibetanos enfurecidos com ânsias de linchamento. Os chineses estão irados e querem vingança, lógico. É como pedir aos cariocas que sejam compreensivos com os criminosos que, vira e mexe, promovem arrastões nas praias do Rio de Janeiro, aterrorizando inocentes e acabando com a paz local.

Mas o Tibete não é o Rio e a turba de tibetanos enfurecida não é um ¿bonde¿ do terror, pura e simplesmente. É preciso pôr tudo em perspectiva, o que não parece ser preocupação do governo ou da mídia chineses. Por que um grupo de tibetanos decidiu destruir as propriedades de chineses ou até mesmo agredi-los fisicamente? A resposta do governo de Pequim é simplória: porque são bandidos manipulados pelo Dalai Lama em seu exílio na Índia. Mas por que, antes disso, cerca de 500 monges fizeram passeatas pacíficas pedindo a liberdade religiosa na região? Mais uma vez, a resposta simplória: porque o Dalai Lama quer separar o Tibete da China.

É como conversar com uma criança, pela ingenuidade, ou com um mau-caráter, pelo cinismo. Distúrbios na ordem e violações da lei devem ser objeto de preocupação da polícia e do Judiciário em qualquer lugar onde se dá valor à integridade de seres humanos e de propriedades. Mas o que ocorre hoje na China é premeditado em cada etapa. É um deliberado projeto de sufocamento de uma minoria étnica que decidiu protestar ¿ da pior forma ¿ contra maus-tratos, exclusão e miséria por anos a fio.

Nas primeiras 24 horas após o conflito em Lhasa, dizem os turistas estrangeiros que ainda estavam na capital, a polícia chinesa não agiu e deixou a turba tibetana enfurecida quebrar o que via pela frente. Os policiais pareciam indecisos sobre agir violentamente, como é da tradição da polícia chinesa, na frente de branquelos louros com câmeras na mão.

Enquanto isso, o governo chinês começou cuidadosamente a montar o cerco à região, expulsar estrangeiros e jornalistas para, só então, fora das lentes da opinião pública internacional, agir. Mas desta forma, com o Tibete isolado, as imagens das forças de repressão chinesa que mataram entre 24 e 130 pessoas (dependendo da fonte consultada) e prenderam entre 24 e mais de duas mil (idem, idem) não foram vistas em lugar algum, porque Lhasa e arredores já estavam devidamente ¿desinfectados¿ do olhar estrangeiro.

A maneira como o governo chinês sufoca o Tibete, impedindo a livre circulação de informações, censurando o trabalho da imprensa, manipulando a opinião pública e usando a mídia, inclusive a internet, para deixar sua população na mais completa ignorância é uma afronta a qualquer país que tenha a democracia e a liberdade de expressão como prerrogativas de governo. Agora, o passeio da tocha pelo planeta é descrito nos jornais chineses como uma guerra entre mundos, numa síndrome de autovitimização muito popular entre os comunistas.

Mais uma vez, são os jornalistas estrangeiros os manipuladores, não o governo chinês. De dentro da barriga do dragão e olhando os movimentos na direção da censura à imprensa que vários governos latinos decidem fazer quando as circunstâncias descritas pelas mídias não lhes favorece, eu tenho hoje apenas uma certeza: calar a mídia é a primeira preocupação de todo regime autoritário quando tem medo que sua incompetência tenha força suficiente para derrubá-lo.

GILBERTO SCOFIELD é jornalista.