Título: Síndrome de Paris
Autor: Martins, Marília
Fonte: O Globo, 12/04/2008, História, p. 44
Relação de amor e ódio com a França pautou Brasil pós D. João.
Era uma vez uma fuga em massa em que os fugitivos chegaram ao seu refúgio e... reencontram seus perseguidores na forma de um delírio de poder. Este é o enredo de um livro surpreendente sobre um conhecido episódio da História do Brasil. ¿Versalhes Tropical¿, da historiadora americana Kristen Schultz, reconta a fuga, em 1807, do príncipe regente, da família real e de mais de 10 mil membros da Corte portuguesa, uma multidão de nobres que se lançou mar a dentro para escapar das tropas de Napoleão. E reinterpreta os 13 anos de D. João no Brasil a partir deste ponto de vista: a Corte lusa fugia de um imperador (Napoleão) que sonhava restaurar a grandeza dos tempos do Rei-Sol (Luis XIV), mas também admirava a opulência de Versalhes. Mais do que isso: os portugueses imaginavam fazer do Rio uma Versalhes tropical.
Como foi possível que a Corte portuguesa elegesse como modelo exatamente a França, o país do qual tentava escapar, quando historicamente a monarquia inglesa havia sido sempre muito mais próxima dos interesses portugueses?
¿ A transferência da Corte para o Rio foi simultaneamente resposta a um tempo de revolução e solução original para a crise do modelo da monarquia no século XIX ¿ explica Kristen, cujo livro será publicado em português pela Record no fim de junho. ¿ De um lado, a Corte fugia de uma Europa convulsionada pela Revolução Francesa e pelas guerras napoleônicas. E, do outro, partia na direção de um continente que havia abrigado a Revolução Americana, a violenta revolta no Haiti e vários movimentos de independência nas colônias espanholas.
Delírio mais forte que a realidade
Segundo ela, esses movimentos desafiavam, no continente americano, não só os princípios e as práticas da hereditariedade como hierarquias de status, raça, cultura e valores que regiam as relações entre a Europa e as terras do além-mar. Os ingleses estavam mais próximos dos portugueses, mas a monarquia inglesa não poderia servir de modelo porque eles buscavam um ideal absolutista que os ingleses não ofereciam.
Noutras palavras: em pânico diante das cabeças coroadas cortadas pela Revolução Francesa, os portugueses sonhavam ter um refúgio, em busca de um final feliz para o poder imperial. Assim teve origem, segundo Kristen, o fascínio pelo estilo de vida de Versalhes e pela cultura francesa de modo geral. Um fascínio que perdurou não só nos 13 anos em que a Corte portuguesa permaneceu no Brasil, como deixou marcas nas missões de artistas franceses, na arquitetura do Rio e também na visão que os brasileiros que lutaram pela Independência tinham da pátria que sonhavam construir.
¿ Esse fascínio pelos maneirismos franceses, que depois da volta da Corte a Portugal ampliou-se, adotando a cultura francesa como um modelo, teve profundas consequências no Brasil do século XIX e em especial no Rio. É verdade que politicamente os portugueses eram aliados dos ingleses, mas apesar disso, a influência francesa foi muito maior, mais efetiva e duradoura. Neste caso, o imaginário teve um peso importante ¿ acredita Kristen.
Professora de história latino-americana, especializada em Brasil, na Faculdade de Ciências Sociais da Cooper Union, em Nova York, Kristen passou um tempo pesquisando no Brasil. A trama de manuscritos, documentos e estudos que serve de base para sua hipótese sobre os 13 anos da Corte portuguesa no Rio, de 1808 e 1821, dá uma nova pista sobre como os defensores da Independência acabaram por entronizar o próprio herdeiro português, entregando a coroa brasileira para o filho do monarca que combatiam.
Fantasmas de uma monarquia
A curiosa e contraditória combinação entre os ideais da Independência e os da monarquia levou o Brasil a construir uma organização político-social inteiramente diversa da do restante do continente, que tem origens, ainda não completamente compreendidas, nestes 13 anos que transformaram o Rio de Janeiro e o Brasil.
¿ O que me atraiu na história da fuga da Corte portuguesa para o Brasil foi perceber como, num período de só 13 anos, se tornaram evidentes contradições e fantasmas que mais tarde estiveram na base da monarquia brasileira ¿ diz Kristen.
Ela investiga a forma como o sistema colonial foi combinado com o cotidiano da sociedade escravocrata do século XIX, desafiando a política antiescravocrata da monarquia inglesa, que condenava o tráfico negreiro. Das gravuras de Jean-Baptiste Debret aos manuscritos de época, Kristen desvenda como senhores e escravos se relacionavam com base num singular paternalismo autoritário que ganhou força nos anos de invenção delirante da Versalhes tropical.
¿ O sistema escravocrata brasileiro pagou tributo a esta passagem da Corte portuguesa pelo Rio. E os escravos da capital também exploraram as contradições no projeto real de transformar o país. Um projeto que procurou reafirmar o poder monárquico por meio de uma vassalagem típica do Novo Mundo ¿ avalia Kristen.
Entre desqualificar a colônia e torná-la o centro do império, por força das circunstâncias, os portugueses no Brasil deixaram bem mais do que a fonte quase inesgotável de anedotas e descrições grotescas dos costumes lusos de então, que até hoje são muito populares quando se fala sobre os anos brasileiros de D.João. Como revela o passeio pelo Rio do começo do século XIX feito por Kristen Schultz, ficou um legado de imagens e contradições que sobreviveu aos 13 anos da aventura lusitana em terras do além-mar.