Título: A banalização das MPs arranha a separação e autonomia dos poderes
Autor: Escóssia, Fernanda da
Fonte: O Globo, 15/04/2008, O País, p. 4

Procurador culpa Executivo pelo problema, mas diz que Legislativo aceitou.

Enquanto se prepara para fiscalizar a eleição deste ano, o procurador eleitoral do Rio de Janeiro, Rogério Nascimento, acompanha pelos jornais um tema no qual é especialista: o excesso de medidas provisórias editadas pelo Executivo e a conseqüente paralisação do Congresso. Autor de "Abuso do poder de legislar", tese de doutorado sobre MPs defendida na Uerj e que virou livro, Nascimento diz que o país poderia viver sem medida provisória. Alerta que, se o Executivo é o maior responsável pelo excesso, o Legislativo foi conivente com ele. "Foi uma servidão voluntária". E o Supremo Tribunal Federal foi pouco atuante para conter o abuso, diz Nascimento, procurador da República no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. E lembra que algumas MPs existem há seis anos: "Provisório de seis anos não é provisório, é precário, gera insegurança".

Fernanda da Escóssia

O presidente Lula disse que não é possível governar sem MPs. O senhor concorda?

ROGÉRIO NASCIMENTO: O Brasil não é dependente das medidas provisórias. Poderia viver sem. Medida provisória não é um mal, mas também não é uma salvação. É um improviso. Na maior parte dos países, o nome é decreto-lei. Na Constituição de 88, se fugiu do nome decreto-lei para diferenciar do instrumento do tempo do regime militar. É um instrumento clássico do parlamentarismo. Têm medida provisória Portugal, França, Espanha, França. Medida provisória num regime presidencialista já é atípico. O presidencialismo tem instrumentos para que o chefe do Executivo seja interlocutor influente com o Legislativo. A Constituição dá matérias de iniciativa exclusiva do presidente e sempre admitiu que ele solicite urgência para projetos de seu interesse. Se não for apreciado em 45 dias, tranca a pauta. Somando poder de veto, iniciativa exclusiva, pedido de urgência, o presidente tem condição de estabelecer sua agenda. Excepcionalmente, pode ter algo muito urgente, relevante, que você não consiga resolver no manejo desses instrumentos. O problema no Brasil foi que se transformou a exceção em regra. O problema é medida provisória, que nasceu para ser excepcional, virar instrumento da rotina de governo. Medida provisória não é vocacionada para ser instrumento da rotina do governo. Se virar instrumento de rotina, inviabiliza o Congresso. A banalização das medidas provisórias arranha a separação e a autonomia dos poderes. Quebra o equilíbrio entre os poderes.

O que motiva a exacerbação do número de MPs?

NASCIMENTO: Elas começam com a Constituição, no fim do governo (José) Sarney, com este nome. A gente vinha de 20 anos de regime militar. A Constituinte queria fortalecer o Congresso, reequilibrar poderes. Havia uma luta do Executivo para manter poder. De outro, uma luta do Congresso por mais força. A MP foi mais um caminho intermediário típico da Constituinte. O decreto-lei, se não fosse votado, era aprovado por decurso de prazo. A MP surgiu com o mesmo prazo de 30 dias, mas, se não fosse aprovada, perdia a eficácia. Era a mudança a favor do Congresso. Só virava lei se o Congresso aprovasse. Qual foi a parte em que o Congresso cedeu ao Executivo? O decreto-lei era limitado a certos temas. A MP nasceu sem limite de tema. Passou a ter prazo, mas não limite de assunto. Foi o que entrou em vigor em 88. O que não foi dito: se podia ou não apresentar de novo MP igual. Em 1989, o Executivo começa a reapresentar MP. Logo que a primeira não foi votada, o Sarney, apresentou outra igual. O problema da MP não foi como foi prevista, mas como foi aplicada. Foi uma servidão voluntária. O Congresso podia, desde o primeiro momento, ter dito que não aceitava. E o Executivo ia ter que se acostumar a ter que usar com parcimônia. O Congresso aceitou reedições de MPs. Não encontrou resistência do Congresso. Por isso foi uma servidão voluntária. Foi cômodo para o Congresso, que ganhava um instrumento de barganha. Quando o Lula chegou ao poder, isso já tinha virado rotina, um estilo. Ele já aprendeu assim.

É possível fazer diferente?

NASCIMENTO: Estou convencido de que é. Na América Latina, só Argentina e Colômbia têm MPs. O Chile não tem. Na Colômbia e na Argentina, o uso é parcimonioso, comedido. Na Alemanha, o chefe de governo decreta estado de necessidade, o nosso regime de urgência. A partir daí, tem prazo para apreciar. Onde há história de abuso da MP é na Itália, onde isso surgiu. Onde há uso intenso, embora não tão abusivo, é na França. Na Itália, desde 1995, está relativamente equacionado. O abuso foi contido pela Corte Constitucional, que passou a considerar inconstitucional MP reeditada. No Brasil, o Supremo nunca assumiu esse papel ativo de controlar as MPs. O Supremo, que poderia ter sido o árbitro da relação, foi pouco atuante. Só houve freio para as MPs quando o Executivo precisou negociar grandes reformas constitucionais. O Fernando Henrique (Cardoso) precisou negociar com o Congresso e teve que ceder poder, o que gerou a emenda constitucional 32. Diferentemente da Itália, o freio não veio do Supremo, foi uma reacomodação do arranjo de poder.

A emenda 32 resolveu?

NASCIMENTO: Melhorou, mas não resolveu. Melhorou porque evitou a reedição e, com isso, tem maior transparência. Mas o problema não era só reeditar. O problema já era também o fato de serem editadas MPs por qualquer assunto, quando seria para casos de relevância e urgência. Essa idéia de urgência simplesmente nunca foi levada a sério. A emenda 32 mudou o prazo, limitou assuntos, limitou a uma única reedição, e definiu regras sobre tramitação. O trancamento é dessa emenda.

O senhor aponta soluções?

NASCIMENTO: A primeira coisa é editar menos MPs. Só usar quando for urgente. Há coisas que poderiam melhorar. A emenda 32 previu que MPs são votadas em separado na Câmara e no Senado, iniciando pela Câmara. A Constituição diz que o projeto modificado volta à Casa iniciadora. É relevante a reivindicação do Senado de alternância na apresentação das MPs. Do jeito que está, a última palavra é da Câmara. Hoje o prazo para o trancamento é um só, de 45 dias. A MP chega ao Senado com pauta trancada, independentemente de o Senado ser ou não ágil. O Senado tem razão de estar insatisfeito, porque teve seu poder reduzido. A Câmara gasta o prazo, e a MP chega deixando o Senado com a corda no pescoço. Se o prazo fosse separado, seria diferente. A MP não passaria de 60 dias, mas teria trancamento no 21º dia; uma Casa votava, e a MP seguia para a outra Casa com prazo zerado, sem trancar. Se o Senado não apreciasse em 21 dias, trancava lá. Ia fluir melhor.

O senhor é contra ou a favor do trancamento?

NASCIMENTO: O que paralisa o Congresso não é o trancamento. É a edição de um número excessivo de MPs. É o que paralisa o Congresso. É conveniente para a maioria acabar com o trancamento. Não consigo ver nisso a raiz do problema. Sou a favor do trancamento. Ele obriga a tomar posição. Não me parece que, no regime democrático, seja aceitável que o Congresso possa se abster de concordar de um projeto ou concordar com ele. É preciso preservar instrumentos para que minorias possam ter alguma influência, ou não é democracia, é despotismo. A culpa (do excesso de MPs) precisa ser dividida com o Congresso, que aceitou reedições. Mas de 2001 para cá, o problema das MPs é essencialmente problema do Executivo. Ele é gerado pelo Executivo.

E quanto às MPs que estavam aguardando votação e foram incorporadas pela emenda 32?

NASCIMENTO: Até a promulgação da emenda, contabilizo no meu livro 253 MPs originais, 5.036 reeditadas. Em 2001, porque vinha a emenda, saiu até edição no sábado do Diário Oficial. Foram 60 MPs entre a aprovação da emenda e a promulgação. As MPs anteriores à emenda estão valendo e não são apreciadas. Existem no limbo. Pelo relatório do Senado, havia em 2007 52 MPs anteriores a 2001. É preciso corrigir esse erro. Essas MPs passaram a valer sem prazo para expirar. Algumas têm seis anos. Tinham que durar 60 dias. O grave é que elas não são leis. Um belo dia, o Congresso pode apreciar uma delas. Alterar texto, ou rejeitar, seis anos depois. E o que aconteceu nesses seis anos? Provisório não pode durar seis anos. Provisório de seis anos não é provisório, é precário, gera insegurança.