Título: A cabeça de Cesar
Autor: Bloch, Arnaldo
Fonte: O Globo, 13/04/2008, Rio, p. 24

Como o prefeito do Rio decidiu (e planejou em detalhes) esconder-se da opinião pública para tentar sobreviver politicamente.

O que se passa na cabeça de Cesar Maia?, perguntam, pasmos, os cariocas, admiradores ou contestadores, fiéis ou desiludidos. Em que se transformou aquele administrador dinâmico, zebra das eleições de 1992, que encheu a cidade de obras, trocou tubulações, conquistou popularidade, e que hoje - aos 63 anos, no fim de seu terceiro mandato - submerge, introspectivo e espalhafatoso, mergulhado em enigmático casulo, como um síndico exausto que desse as costas para o prédio infestado de mosquitos assassinos, deixando à deriva seus condôminos?

Palpites abundam de línguas afiadas, em busca de alguma verdade lógica ou psicológica: personalidade complexa, tida por "fronteiriça" ("um pouquinho mais para o lado de cá da fronteira"), Cesar, em vistas de seu comportamento atual, estaria se aproximando perigosamente do lado de lá, prestes a cruzar a imponderável linha da chamada realidade. Ou dominado por uma "síndrome de Groucho": se o mais célebre dos irmãos Marx nunca seria sócio de um clube que o aceitasse como sócio, Cesar, por sua vez, teria se dado conta, tarde demais, do pesadelo que é ser prefeito de uma cidade que o elegeu prefeito, e - pior - três vezes!

A hora da "ocultação"

Curiosamente, a hipótese de Groucho, tão cheia de fel, está mais próxima da tal realidade do que parece: político outrora tido pelos aliados como isolacionista, durante o primeiro mandato Cesar aproveitou a liberdade para cercar-se dos quadros de sua preferência e tocar programas estratégicos (Rio-Cidade, Favela-Bairro, Linha Amarela, Ciclovias, mutirões de reflorestamento etc). Com o passar dos anos e a influência cada vez mais forte do filhoco Rodrigo Maia como player da cena partidária de oposição federal, Cesar chega ao fim da terceira gestão preocupado demais com política e de menos com a cidade - e bem mais permeável a critérios clientelistas alienígenas na hora de montar sua entourage. Em suma, mais dependente.

Prestar contas de suas ações diante da opinião pública, então, transformou-se em último item na lista de prioridades. Ele o faz (ou melhor, não faz) conscientemente. E o explica professoralmente, entre garfadas controladas de bolinhos de arroz: decidiu refutar de vez "o pensamento americano pós-Reagan" - que preconiza que todo dia é dia de eleição (bem ao modo da retórica de Lula) - e rezar pela "cartilha européia": um político com alguma história deve optar pela "ocultação", evitando um desgaste que acabe em desastre (coisa que, pelo jeito, se avizinha do Piranhão).

Na grande marcha a caminho da tal ocultação, a primeira providência foi assassinar o seu ego-factóide: chega de "lelé do cuco", chupador de sorvete em açougue, amigo do peito de dinossauros de museu. O tempo da superexposição - que servira para torná-lo conhecido - corria o risco de consolidar, na retina da opinião pública, a imagem irresistível de Napoleão de São Conrado.

Depois, como uma criança diante de um brinquedo novo, descobriu na internet um meio de promover uma hipotética revolução pela democracia direta eletrônica, driblando as indesejáveis associações de bairros e, sobretudo, as imprensas escrita e televisionada.

O passo final e definitivo da "ocultação" ocorreu nos últimos meses e atingiu o ápice nas últimas semanas - no rastro do aumento do IPTU, no afã da dengue e na evidente conjuntura de abandono da conservação da cidade, culminando nos piores índices de avaliação de suas gestões.

Nem o próprio Cesar nega que tenha abandonado as obras essenciais - o que, na defensiva, ele atribui aos gastos com o Pan-Americano, que teriam superado as possibilidades de caixa por conta da demora do governo Federal em desembolsar dinheiro. Ecoando o bordão defensivo usado pelos fiéis do presidente, mais uma vez "a culpa é do Lula...".

Para enfrentar o péssimo momento e tentar recompor a força eleitoral de seu grupo para as eleições do fim do ano, Cesar decidiu, então, que a solução era desaparecer completamente da mira das câmaras e negar aos jornalistas acesso a suas atividades.

Numa sociedade espetacularizada - teoriza Cesar - os jornais e principalmente as TVs dramatizam o jornalismo e a política. Diante das câmaras, o cidadão sobe ao palco, quer ser ator, representa, aparece, ao passo que "a realidade" da interação Cesar-povo some, numa espécie de variação carioca do fim da opinião pública (ou publicada, como gostam de dizer os publicitários disfarçados de assessores políticos).

Acuado na trincheira

"Bocas, caras, olhares para as câmaras.... nada se dirige às pessoas que assistem. Inacreditável como alguém possa pensar que aquilo é um ato real!", espanta-se Cesar, em e-mail emoldurado por exclamações. Portanto, nada de agenda. Nada de fotos (a não ser as que o próprio prefeito manda fazer, para sua própria contemplação). Na rua, só contato direto com a população das zonas Norte e Oeste, seus refúgios num momento em que aparecer na Zona Sul pode ser risco de vida.

E ai dos incautos que saírem em micro-passeatas, pois as mesmas serão filmadas para que Cesar analise, na calada do dia, a dramaturgia da midiática encenação!

E dá-lhe Acari, Roquete Pinto, Jacarezinho; dá-lhe corpo-a-corpo em mesas de carteado; dá-lhe inspeção no piscinão. E dá-lhe graças a Deus (sem citá-lo) por ter escolhido ficar num ponto móvel entre o que ele chama de "vetor extremo das esquerdas populistas e dos defensores da informalidade" e o outro vetor, "dos defensores cristãos da Lei e da ordem e dos amigos da especulação imobiliária".

Assim, alternando esses passeios não-documentados por seus currais com os despachos diários pelo mundo da informática, o prefeito oculto acredita que, neste passo, pode prescindir dos jornais e da televisão. E, qual um profeta do apocalipse, adverte as mídias: "cuidado para não fomentar - num extremo ou no outro - forças perigosas e destruidoras".

Pairando sobre os fatos e o tempo, Cesar se vê longe da perspectiva da depressão (a que muitos atribuem seu comportamento). A força para fugir às trevas da alma ele credita ao passado comunista - que lhe deu "o amor pelo saber" - e ao mestre Brizola, que lhe ensinou a enfrentar as dificuldades com permanente espírito de combate. "Como Napoleão", faz questão de ressaltar, sem dar-se conta da involuntária piada.

O combate, no momento, pode até se dar nas trincheiras, mas o general, acuado, está ativo, elétrico, com seus pensamentos voltados para o contra-ataque: a curto prazo, fazer sucessor na cadeira da prefeitura; a médio prazo, sobreviver politicamente.

Como o mar não está para peixe vivo, vem convocando reuniões até em fins de semana para estudar a conjuntura adversa com seus mais próximos colaboradores, que são também seus amigos (pois Cesar não tem amigos fora da máquina municipal): Rodrigo Maia, Solange Amaral, Eider Dantas, João Pedro Figueira e a inseparável Mariangeles, sempre influente para bem além dos assuntos familiares.

As pesquisas e cenários chegam quase diariamente ao gabinete, projetando situações de primeiro e segundo turno, estudando as alternativas de voto útil.

De que adianta, agora, pôr a cara a tapa, se o mal já está feito, se o leite já entornou, se a porrada vem de qualquer modo?, reflete o prefeito, num esforço tão cerebral quanto desesperado de irrigar o terreno rachado pelo sol dos infernos.

Ensaio para o último ato

Se morrer na praia em outubro, Cesar, desembaraçado deste Rio cansado de guerra, voltará seus sonhos e baterias para o Senado em 2010. Com os olhos molhados, desenha o futuro: oito anos num belo gabinete em Brasília, para onde pretende levar toda sua biblioteca, submergir em estudos, distribuir notas, links e resenhas a seus áulicos, "capilarizar" seu saber para além da comezinha administração do dia-a-dia.

Porém, o crescente pragmatismo e um certo sentido auto-impingido de dever pode desviá-lo desta ilha político-professoral: a depender do andar da carruagem estadual, das forças restantes, emergentes e reemergentes, ele crê ainda numa missão maior: o pleito para governador.

Nesse frigir dos ovos municipais, não faltam mágoas e ressentimentos. O maior deles: o Guggenheim. Dias atrás, distribuiu aos principais colaboradores cópia de uma reportagem na Folha de São Paulo mostrando as principais obras do arquiteto francês Jean Nouvel, com uma nota: "O Guggenheim já podia ser nosso". Pois, no lugar de festejar o grande museu marinho que afundou antes de flutuar, agora amarga críticas à sua Cidade da Música, supérflua majestade erguida sobre os escombros da Cidade da Dengue.

Deve ser triste mesmo para o político com maior tempo de mandato e maior número de gestões à frente do Rio a perspectiva de findar o longo ciclo sendo lembrado não pelo que fez de positivo, mas pelos erros cometidos - a maioria no terceiro ato do grande teatro. Acossado na encolha de sua trincheira, o general Maia só pensa numa coisa: em não perder, ao cair do pano, a guerra final contra a História.

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