Título: O sertão vira mar, e mistura tristeza e alegria
Autor: Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 20/04/2008, O País, p. 16

Paraibanos lamentam perdas com chuvas, que castigam metade do estado, e ao mesmo tempo celebram fartura de água.

CABACEIRAS (PB). O sertão não virou mar, mas chegou perto. É que as águas de março vieram aos borbotões. E em ritmo intenso, só observado uma vez a cada quatro décadas na Paraíba, estado que tem 80% do seu território situado no semi-árido, e, portanto, acostumado a conviver com a seca. Mas se o excesso de sol já levou muitas vezes as prefeituras a decretarem estado de calamidade, agora há 112 dos 223 municípios paraibanos em situação de emergência declarada devido às chuvas. Elas fizeram estourar 308 açudes, o que gerou efeito cascata: um "mar" que se espalhou, deixando quase 18 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas, mas que despertou no sertanejo um sentimento que mistura tristeza e alegria.

Tristeza pelas marcas da tragédia: 27 mortos, 1.851 casas desabadas ou danificadas, 407 obras destruídas (barragens, barreiros, bueiros, pontes), seis rodovias estaduais interditadas e 30 em estado precário. Tristeza por bens perdidos, como no caso de Maria Eufrásia Ribeiro Leite, da Fazenda Teimosa, no município de Boqueirão, no Cariri. A correnteza derrubou 40 pés de algaroba, uma árvore resistente à seca e que serve de ração para o gado no período de estiagem. As árvores caídas encheram de madeira três caminhões. Ela também viu 14 novilhas e três ovelhas serem arrastadas. Conseguiu recuperar 11 animais, mas não o cachorro de estimação. Ele morreu afogado, porque estava acorrentado e ela não chegou a tempo de salvá-lo.

Para muitos, no entanto, a água é alegria pela fartura. Em plena enchente, com nível atingindo até dois metros de altura no Centro da cidade, moradores de Cabaceiras se divertiam há alguns dias, andando de barco ou mesmo pescando na principal praça do município, durante o período mais crítico da inundação. Uma naturalidade que surpreendeu o psicólogo da Secretaria de Ação Social da prefeitura Adriano Ferreira de Melo. Ele estava em Campina Grande, a 123 quilômetros de João Pessoa, e viajou às pressas para Cabaceiras, prevendo encontrar uma população desesperada. Nada disso:

- Viajei tenso, pensando que ia encontrar a cidade arrasada, a população emocionalmente abalada. Teve gente que perdeu tudo, mas parece que a alegria pela oferta de água é maior do que a tristeza pela destruição e pela perda.

Cabaceiras, a 200 quilômetros de João Pessoa, é tida como a cidade em que menos chove no Brasil. E enfrentou em um mês densidade pluviométrica 700% maior do que a média histórica anual, segundo o diretor técnico da Agência Executiva de Gestão das Águas (Aesa), Laudízio Diniz.

Primeiro foi o excesso de chuva no município, que deixou a área rural inundada. Depois, dois açudes próximos sangraram - o Epitácio Pessoa e o Namorados -, e o Rio Taperoá transbordou, invadindo a área urbana. Muita gente escapou por pouco. Foi o caso do artesão Severino Gomes de Macedo, de 71 anos, há 59 fabricando chapéus e arreios de couro. Ele entrou em sua oficina com a água na altura de 20 centímetros, mas em pouco tempo ela batia na cintura. Salvou alguns equipamentos e, um minuto depois de sair da casa, ela caiu.

- Um amigo me disse que escapei fedendo. Eu respondi que é melhor escapar fedendo do que morrer cheiroso - comentou o artesão, que por enquanto está trabalhando num prédio antigo cedido por uma amiga.

Outro que escapou por pouco foi o agricultor Josué Francisco Macedo, que viajava por uma rodovia estadual em sua moto na altura do município de Boqueirão. Meia hora após passar por uma ponte, ela ruiu, arrastando um carro e provocando a morte de uma mulher e três crianças.

O artesão Severino relata que nunca vira inundação tão grande em Cabaceiras, mas diz que, no semi-árido, um bom inverno é sempre bem-vindo. Depoimento semelhante tem João Bosco Cavalcanti Souza, de 29 anos, trabalhador em uma pequena indústria de confecções. A mãe, Rita de Freitas, que mora na área rural, está há um mês na casa do filho, para se abrigar das águas. Ele mora no Centro e a inundação ficou a apenas dez metros do seu portão. Nem teve medo nem ficou triste:

- A gente vive em seca sempre. Há pessoas que moram aqui há meio século e nunca viram tanta água. Eu também nunca tinha visto tanta. Água, pra gente, é sempre motivo de alegria. A população de Cabaceiras já passou até mais de um semestre se abastecendo com água em lombo de jumento, caminhão pipa, carro de mão. Viver sem racionamento, com água na torneira todo dia, é motivo para comemorar - afirma.

O psicólogo da prefeitura lembra que os sertanejos fazem do excesso de água um motivo de diversão. Eles ficam contemplando rios, açudes, sangradouros. E não se intimidam diante da correnteza.

Nos municípios de Boqueirão e Cabaceiras morreram cinco pessoas arrastadas enquanto admiravam as águas. O agricultor Antônio Pereira Macedo, de 80 anos, viajou 30 quilômetros na garupa de uma moto para contemplar o açude Epitácio Pessoa sangrando. A barragem é a segunda maior do estado e abastece Campina Grande e mais 16 municípios. Macedo participou de sua construção, em 1952, e nunca tinha visto a represa transbordar.

- Ajudei a fazer esse açude carregando muita pá de terra. Estou achando lindo ele sangrar. Terra seca é ruim, mas molhada é bom demais, uma riqueza - comemora.

Dono de um bar em Boqueirão, Evanilson Ferreira, de 32 anos, também admirava a barragem na última quinta-feira.

- A alegria da cidade é ver este açude sangrar - dizia, enquanto molhava as pernas da filha, Eli, de 1 ano.

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