Título: Processo contra dez mil mulheres que teriam abortado vai parar na Câmara
Autor: Carvalho, Jailton de; Yafusso, Paulo e
Fonte: O Globo, 25/04/2008, O País, p. 4

Para presidente da Comissão de Direitos Humanos, caso é "volta à inquisição"

BRASÍLIA e CAMPO GRANDE. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Pompeo de Mattos (PDT-RS), decidiu ontem propor uma audiência pública com o promotor, a delegada, o juiz e outras autoridades vinculadas à ameaça de processo criminal contra 9.896 mulheres que teriam feito aborto em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, nos últimos oito anos. O deputado deverá apresentar a proposta na próxima reunião da comissão, quarta-feira. Pompeo pedirá ainda que a comissão se manifeste de antemão contra a tentativa do Ministério Público de levar as mulheres ao banco dos réus:

- A votação do requerimento vai redundar no pedido de uma audiência pública com todos os envolvidos no processo. O juiz certamente não vai querer vir. Mas vamos chamar todos.

Numa decisão sem precedentes no país, o promotor Paulo Cesar dos Passos pediu à delegada Regina Rodrigues da Mota, da 1ª Delegacia de Campo Grande, uma investigação sobre as fichas de 9.896 mulheres que, desde 2000, teriam feito aborto Clínica de Planejamento Familiar.

Feministas planejam organizar protestos de rua

A clínica pertence à médica Neide Mota Machado, alvo de um processo sobre os supostos abortos. A iniciativa do promotor foi aceita pelo juiz Aluízio Pereira dos Santos, do 2º Tribunal do Júri, encarregado do processo contra a médica e várias funcionárias da clínica. Em seu despacho, o magistrado determina que deverão ser ouvidas apenas as mulheres que, ao longo da análise das fichas, enfrentem fortes indícios de que tenham feito aborto na clínica da médica Neide Mota Machado.

Segundo Pompeo de Mattos, a ameaça de processo contra as mulheres é um retrocesso histórico. Para o deputado, não faz sentido abrir uma investigação coletiva num caso que estaria relacionado à saúde pública, e não a um crime.

- Estão fazendo caças às bruxas, é uma volta à Inquisição. É um absurdo. Sou contra esse processo e vou pedir a comissão que se posicione sobre o assunto - disse o deputado.

O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), uma das mais atuantes ONGs de defesa das mulheres, denunciou o caso ao Congresso no início deste mês. Para a entidade, o processo atinge em cheio direitos fundamentais das mulheres e não pode, em hipótese alguma, ser levado adiante. O Cfemea examina a possibilidade de fazer protestos de rua e até processar as autoridades do caso que, no início das investigações, tornaram as fichas das pacientes da Clínica de Planejamento Familiar acessíveis ao público.

- A intimidade das mulheres foi violada - afirmou Kauara Rodrigues, uma das assessoras técnicas do Cfemea.

Em Campo Grande, entidades ligadas ao movimento feminista nacional também se articulam para impedir o indiciamento, ou pelo menos tentar garantir que as mulheres que serão investigadas por suspeita de aborto em Mato Grosso do Sul, tenham orientação de advogados.

Natália Ziolkowski, da ONG Articulação de Mulheres Brasileira, disse que as nove entidades que na semana passada lançaram um manifesto querem que essas mulheres não sejam penalizadas pelo fato de que no fichário apreendido na clínica havia o nome delas. Ela disse que não há intenção de que as investigações da polícia sejam trancadas, mas que as mulheres que forem chamadas a depor recebam orientação e acompanhamento de advogados.

Verificação do fichário deve levar 80 dias, diz delegada

"Iniciativas como essa visam inibir o direito das mulheres de se insurgirem individualmente (desobediência civil) contra essa lei que restringe seus direitos e a autonomia sobre seus corpos, bem como inibir a atuação das organizações que também defendem esse direito", diz trecho do manifesto distribuído na semana passada, assinado por nove entidades.

A delegada Regina Rodrigues da Mota disse que as 9.896 fichas ainda não foram devolvidas à Polícia Civil. Ela estima que seja necessário uma média de 10 dias para analisar as fichas de cada ano. Ou seja, só a verificação do fichário deve levar 80 dias, já que a tarefa vai entrar na rotina de trabalho da Delegacia, pois não será criado nenhum grupo especial para isso. Segundo ela, nessa triagem é que serão definidos quais clientes da clínica serão intimadas a prestar depoimento.

*Especial para O GLOBO