Título: Na Rússia, um medo sem fim
Autor: Oswald, Vivian
Fonte: O Globo, 26/04/2008, Ciência, p. 40

Fantasmas da repressão de Stalin ainda assombram

Cinqüenta e cinco anos se passaram desde a morte de Josef Stalin (1878-1953). Outros 52, desde o XX Congresso do Partido Comunista, no qual foram denunciados os crimes do stalinismo (1922-1953). E, há 17 anos, a União Soviética ruiu ¿ o que faz com que uma geração inteira não tenha idéia do que foi viver sob o totalitarismo. Nem por isso os russos sabem conviver com o passado. Até hoje, estão presentes não só as lembranças da vida em um Estado policial; há, por toda parte, no cotidiano da Rússia moderna, os sintomas das décadas em que era preciso mentir, sussurrar e esconder. As narrativas de tristeza, medo e desencontro se repetem; tantas, que não têm rosto. Todo russo tem uma história para contar, que, de tão trágica ou irracional, soa quase como ficção A maioria, entretanto, prefere guardar essa memória para si. O estrangeiro não sabe se a introspecção se deve à vergonha ou à dor. O fato é que muitos não falam.

Um dos programas mais populares da TV russa, o ¿Jdi Meniá¿ (¿Espere por mim¿), ajuda as pessoas a encontrar parentes desaparecidos. Muitos deles recomeçaram a vida em outros países há tanto tempo que já não faziam idéia de que ainda tinham alguém na Rússia. Um sujeito, descendente de russo imigrado há muitas décadas, já tinha até se ¿transformado¿ em índio canadense. Sabe Deus como.

Inveja, traição e mesquinharia

O livro ¿The whisperers¿, do historiador britânico especialista em Rússia Orlando Figues, publicado na Inglaterra no final do ano passado, reúne centenas de histórias contadas pelos sobreviventes do stalinismo. Essas pessoas explicam como o regime mudou as referências das famílias e interferiu na vida doméstica na União Soviética. ¿A chamada `esfera da vida privada¿ não pode nos escapar, porque é precisamente aí que o objetivo final da Revolução deve ser atingido¿, teria dito Anatóli Lunacharsky, primeiro comissário do povo soviético para educação e cultura, em 1927. Entre ingênua e onipotente, a revolução comunista pretendia criar um novo ser humano.

Em Moscou, o clima de desconfiança e denuncismo transformava vizinhos compulsórios em espiões uns dos outros. Daí a necessidade de sussurrar, que dá nome ao livro de Figues. No Brasil, a obra será lançada no ano que vem, pela Ed. Record, como ¿Sussurros: a vida privada na Rússia de Stalin¿.

¿Os apartamentos comunais soviéticos constituíam o núcleo doméstico da cultura da inveja, que surgiu de maneira natural num sistema em que tudo era escasso. Em um modelo social baseado no princípio da igualdade na pobreza, se uma pessoa tinha algo mais do que outra, era porque obteve à custa de todos os demais¿, afirma o autor. As denúncias podiam ter as motivações mais mesquinhas ¿ não só praticar ¿subversão¿, mas também desejar a mulher do próximo ou o cômodo alheio.

Durante algumas semanas, O GLOBO buscou levantar histórias de moscovitas durante o stalinismo. Quase ninguém se dispôs a falar ¿ seja com jornalistas, seja com estrangeiros.

¿ Não quero contar o que aconteceu. Meu pai sempre resistiu à idéia de tratar disso conosco e não gostaria que eu o fizesse depois da sua morte. É muito doloroso relembrar ¿ afirma a filóloga Evgenia Ivanovna.

No entanto, convencidas de que era importante registrar parte do passado, duas russas, mãe e filha, resolveram recorrer a amigos e colegas de trabalho. Recolheram, de conhecidos, depoimentos verídicos sobre seus familiares, sob a condição de que os nomes não seriam citados. Entregaram ao GLOBO uma resma manuscrita em russo, que continha testemunhos anônimos, todos relatados em um só ambiente de trabalho ¿ uma biblioteca de Moscou. Curiosamente, ficam na memória as histórias da improvável sobrevida à adversidade. Quatro delas são resumidas a seguir:

O PROFESSOR: L. era professor da Universidade de Moscou e, como outros tantos, foi incorporado a um batalhão logo no início da Segunda Guerra ¿ conhecida até hoje entre os russos como a ¿Grande Guerra Patriótica¿. Da mesma forma que seus companheiros de infortúnio, nada sabia sobre fuzis. Foi capturado em 1941 e mandado a um campo de concentração, onde ficou até 1944. O médico alemão, informado da chegada do Exército vermelho no dia seguinte, revelou a L. que todos seriam executados pelos nazistas e ajudou-o a escapar. L. voltou a Moscou, na expectativa de ser enviado para a Sibéria como prisioneiro, destino de todo soldado soviético capturado pelo inimigo. Contudo, viveu por décadas na capital, com a mala pronta para o inexorável degredo, que acabou nunca acontecendo. Morreu aos 90 anos, sem que, por sorte, tivesse sido identificada sua condição de ex-detento.

O INIMIGO: Em um dos ¿grandes expurgos¿ do período stalinista, M. foi considerado, por algum motivo, inimigo da Revolução. Decretou-se que deveria ser executado. Foi levado, juntamente com outros vários condenados, para o pelotão de fuzilamento. A cada sessão, abatia-se certo número de presos, e devolvia-se o excedente para a execução seguinte. M. foi levado ao pelotão de fuzilamento por sete vezes. Quis o destino que fosse poupado em todas elas. Morreu de velho.

A CAMPONESA: A família de V. vivia próxima ao Lago Baikal, na Sibéria. Com a coletivização da agricultura, na década de 1930, chegou à região a Grande Fome do período. Há relatos de corpos pelas ruas, e a população passou a comer os animais de estimação e até mesmo ratos. Já não desperdiçavam sequer as cascas de batatas e beterrabas. Surgiu então a oportunidade de migrar para a Quirguízia, na Ásia Central. Como a família de V. não podia arcar com o custo das passagens para todos, o filho A., doente e desenganado por conta da subnutrição, foi posto em uma mala. Três dias depois, chegando ao destino, onde o clima possibilitava alguma fartura, deram ao menino uma caixa de morangos. Teria sido o bastante para salvar-lhe a vida.

A DEPORTADA M. vivia em Moscou com os pais e três filhos pequenos até que, em 1940, foi deportada para a distante região siberiana de Yakutia. Na capital, o pai foi mandado para a prisão, onde acabou morrendo. A mãe adoeceu. Impedida de voltar, M. casou-se novamente e teve outros três filhos. Em Yakutia havia trabalho, o que permitiu a M. sustentar à distância os filhos que teve de abandonar. No entanto, jamais os reviu.