Título: O combustível da crise
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Globo, 04/05/2008, Opinião, p. 7

Cerca de 850 milhões de pessoas passam fome no mundo. Já são muitas, mas o problema é que as recentes altas dos preços dos alimentos ameaçam levar mais 100 milhões à fome. Como a população pobre gasta quase toda a sua renda com alimentos, em muitas nações os esforços de décadas para superar a miséria poderão ser neutralizados. A insegurança alimentar está perigosamente alta e os estoques de cereais são os mais baixos em 25 anos. Entre os 82 países que a FAO classifica como Low-Income Food-Deficit Countries (LIFDCs), países pobres com déficit de produção de alimentos, 37 enfrentam crise séria. Nessas horas, não falta quem faça análises apressadas, como Jean Ziegler, que demonizou a produção de biocombustíveis, apontando-os como os combustíveis da crise.

Na realidade, situações como essa têm causas complexas. Em primeiro lugar, há questão estrutural de fundo: a demanda por alimentos vem crescendo mais do que a oferta há vários anos. A afluência e urbanização de países como China e Índia exercem grande pressão no mercado mundial de alimentos. Os pobres desses e outros países estão comendo mais e melhor, o que é muito bom. Porém, esse processo tende a aumentar os preços dos alimentos em escala mundial.

Em segundo, a grande alta do preço do barril do petróleo aumenta os fretes para o transporte dos pesados cereais e encarece a produção de fertilizantes, insumo básico da agricultura. Em terceiro, há fatores climáticos envolvidos. Na maioria dos 37 LIFDCs em que a crise é mais aguda, fenômenos meteorológicos reduziram a produção interna de alimentos. É o caso do Haiti e da Nicarágua, nos quais furacões inundaram áreas plantadas em anos recentes. O aquecimento global tende a esfriar a produção de alimentos. Em quarto, há movimento especulativo nas bolsas de commodities que potencializa a alta dos alimentos. Com a erosão do dólar e a insegurança gerada pela crise americana, as commodities agrícolas se tornaram ouro, refúgio seguro e valioso contra perdas financeiras.

Nesse contexto, os biocombustíveis pouco ou nada contribuem para a alta dos alimentos. Do 1,2 bilhão de hectares plantados no mundo, apenas 10 milhões, 0,8% do total, estão ocupados por culturas destinadas aos biocombustíveis. Embora essa área venha crescendo, ela é ainda muito pequena para produzir efeitos significativos na oferta de alimentos. No Brasil, a fabricação de etanol a partir de cana-de-açúcar, extremamente eficiente e com experiência de mais de 30 anos, ocupa apenas 4% da terra plantada.

Entretanto, os biocombustíveis podem ter impacto negativo na produção de alimentos nos EUA e na Europa. Nos EUA, o etanol de milho, altamente subsidiado, está pressionando o preço das carnes, já que o milho é insumo importante para a engorda de animais. Na UE, o etanol de beterraba e o biodiesel de canola, duas aberrações econômicas, estão atraindo cada vez mais agricultores, graças aos generosos subsídios. Em ambos os lados do Atlântico, trata-se de produção duplamente subsidiada. Recebe dinheiro dos programas de apoio à agricultura e subsídios dos programas de energia renovável.

Chegamos, assim, ao verdadeiro combustível da atual crise alimentar: a montanha de subsídios que países ricos destinam a seus agricultores, que são regiamente pagos para plantar ou simplesmente "manter o campo". Justifica-se essa irracionalidade sob o prisma da segurança alimentar. Mas essa segurança dos países abastados, ao distorcer o comércio agrícola mundial, gera muita insegurança alimentar em países pobres. A comercialização de alimentos subsidiados inibiu o desenvolvimento da agricultura em nações em desenvolvimento de vocação agrícola. Na crise, são elas que pagam o preço dessa irracionalidade, com o aumento da fome e da miséria.

Jacques Diouf, diretor da FAO, sugeriu que a comunidade internacional financie o desenvolvimento da agricultura das nações pobres, como forma de compensar as distorções geradas pelos subsídios. Porém, esse não é o melhor caminho. Parafraseando Stanislau Ponte Preta, o caminho não é locupletar todos os agricultores com subsídios, até mesmo porque não haveria recursos para competir com a farra agrícola dos EUA e da UE, mas sim restaurar um mínimo de racionalidade e de moralidade no comércio dos alimentos. O Brasil e o G20 estão tentando fazer isso em Doha, ao propor a redução substancial de subsídios. Se os países desenvolvidos cederem, as coisas começarão a melhorar. Podem melhorar ao ponto em que a alimentação do um bilhão de seres humanos que vivem com 1 dólar por dia seja tão boa quanto à das vacas européias, que recebem o triplo.

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).

www.oglobo.com.br/opinião