Título: Mandatos para o crime
Autor: Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 04/05/2008, Rio, p. 19

Polícia diz que políticos participaram de tentativa de assassinato em guerra de milícias.

Réus num processo criminal sob a acusação de comandarem a milícia autodenominada Liga da Justiça, o deputado estadual Natalino José Guimarães (DEM) e seu irmão, o vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho (PMDB), participaram pessoalmente de uma tentativa de assassinato relacionada à disputa pelo controle de uma cooperativa de vans de Campo Grande. O envolvimento dos dois políticos - ambos inspetores de Polícia Civil licenciados - no ataque é apontado em inquérito da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) encaminhado ao procurador-geral de Justiça, Marfan Vieira, e deve ser denunciado na próxima semana ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça. As investigações revelam detalhes de uma guerra travada entre duas milícias chefiadas por políticos e policiais que disputam o controle territorial na Zona Oeste. Jerominho está preso. Natalino não foi encontrado para comentar o caso.

Responsável pelas investigações, o delegado Claudio Ferraz classifica no inquérito os grupos como organizações mafiosas. "Para atingir seus objetivos criminosos, aproveitam-se de privilégios e prerrogativas inerentes aos cargos públicos exercidos pela maioria de seus integrantes, policiais e políticos com mandados eletivos, infligindo na população um enorme sentimento de dominação, terror e descrédito pelos órgãos responsáveis pela aplicação da Justiça e segurança pública", descreve Claudio no inquérito.

O poder desses grupos em Campo Grande, Santa Cruz, Bangu e Guaratiba pode ser medido pela quantidade de assassinatos atribuídos a eles (cerca de 60 em cinco anos), além da dificuldade de reunir provas contra os envolvidos nos crimes. O inquérito relacionado à tentativa de assassinato de um ex-integrante da Cooperouro, por exemplo, levou quase três anos para ser concluído. Em meio às investigações, uma testemunha foi assassinada, outra desapareceu, três mudaram seus depoimentos e duas foram incluídas no Programa de Proteção a Testemunhas.

Diante desse quadro, a alternativa do Serviço de Inteligência da Draco foi o cruzamento de informações de diversos registros de ocorrência das delegacias da Zona Oeste. O trabalho, segundo o inspetor Jorge Gerhard, possibilitou a comprovação de que Natalino e Jerominho estavam presentes no momento em que o ex-integrante da Cooperouro foi alvo de uma tentativa de homicídio.

O crime aconteceu na noite de 15 de junho de 2005, quando um comboio de cinco veículos chegou à Rua Irmã Maria Maurítia, em Guaratiba. Num dos veículos, Natalino e Jerônimo viram Luciano Guinâncio Guimarães (filho de Jerominho), Leandro Paixão Viegas (o Leandrinho Quebra-Ossos), Júlio César dos Santos (o Julinho Tiroteio) e Ricardo Teixeira Cruz (o Batman) atirarem contra a vítima, que conseguiu escapar invadindo casas.

Vizinhos chamaram a polícia e agentes da 43ª DP (Guaratiba) conseguiram abordar um dos carros do comboio. No interior de um Meriva, estavam Jerominho, Natalino e Luciano Guinâncio. Na delegacia, os parlamentares disseram estar a caminho de Campo Grande, após participarem de uma reunião política. Hoje, quase três anos depois, a versão é colocada em xeque no inquérito da Draco.

Proposta acabaria legalizando milícias

Eleito deputado estadual com 49.405 votos, 0,6% do total válido, Natalino é citado nas investigações como representante da milícia na Alerj. Prova disso é que, mesmo após ser denunciado pelo procurador-geral Marfan Vieira, o político conseguiu aprovar na Alerj a indicação legislativa 214/2007, propondo ao Executivo a criação da polícia comunitária, que empregaria policiais aposentados. Na prática, a medida legalizaria a atuação das milícias. O estado não apresentou o projeto proposto.

As investigações da Draco mostram que os dois principais grupos que disputam o controle da cobrança de "taxa de proteção" de moradores, comerciantes e cooperativas de transporte alternativo na Zona Oeste são formados por PMs, policiais civis e agentes penitenciários. Na Liga da Justiça, além de Natalino e Jerominho, figuram outros dois inspetores de Polícia Civil e seis PMs e ex-PMs.

À frente do outro grupo, conhecido como Milícia do Mirra, está o soldado da PM Fabrício Fernandes Mirra e outros sete policiais militares. Em fevereiro, a Draco conseguiu reunir provas para pedir a prisão de 14 integrantes do bando, que rivaliza com a Liga da Justiça no domínio da cobrança de taxas das cooperativas de vans. A base de atuação do bando é o município de Itaguaí, mas os integrantes da milícia estão envolvidos em assassinatos e extorsões em bairros da Zona Oeste e até em Teresópolis.

Um dos crimes praticados pelo grupo foi descoberto a partir de interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça. Nas escutas, PMs ligados ao bando falam na execução de um desafeto, morto a pauladas. Durante a conversa, um dos policiais ressalta que o crime foi presenciado por uma pessoa. O interlocutor, então, determina que a testemunha seja localizada e morta.

Apesar do conteúdo da gravação, o juiz Rafael de Oliveira Fonseca, da Vara Criminal de Itaguaí, concedeu habeas corpus aos 14 presos, que respondem ao processo em liberdade. Um detalhe: foi o próprio juiz Rafael Fonseca que concedeu os mandados de prisão contra os milicianos. Para o delegado Claudio Ferraz, da Draco, casos que envolvem crime organizado devem ser julgados fora da comarca de atuação dos grupos.

- É notório o domínio territorial desses grupos em determinadas áreas do estado. Para evitar pressões, a saída é criar varas exclusivas para julgar esses tipos de grupos - defende Ferraz.

O delegado acrescenta que o processo referente à milícia chefiada por Natalino e Jerominho só não está tramitando na vara criminal de Campo Grande porque o deputado estadual tem foro especial. Ferraz ressalta que não há qualquer tipo de crítica à atuação do Judiciário nessas áreas:

- A verdade é que muitos juízes e promotores são ameaçados nessas áreas, mas eles conseguem receber proteção. Imagine, no entanto, as testemunhas, que têm famílias nessas regiões e acabam sucumbindo às pressões. Os inquéritos mostram isso. Há muita testemunha que muda a versão de um depoimento para não ser morta - alega Ferraz.

Ex-secretário nacional Antidrogas, o juiz Walter Maierovitch também defende a criação de varas exclusivas para julgar envolvidos com o crime organizado. Maierovitch atuou em ações de combate à máfia na Itália. Ele ressalta que a medida foi colocada em prática no país europeu para garantir a integridade de juízes e promotores envolvidos nas ações antimáfia.

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