Título: É uma nova Bolívia que está em formação
Autor: Valente, Leonardo
Fonte: O Globo, 04/05/2008, O Mundo, p. 41

Segundo o historiador da UFRJ Daniel Chaves, país pode estar vivendo sua maior ruptura desde a independência.

Para o historiador do Laboratório do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daniel Chaves, que conhece de perto a realidade política da Bolívia, em especial a do departamento de Santa Cruz, o referendo autonomista de hoje pode marcar uma nova fase do país e a mais importante desde a sua independência. Segundo ele, no entanto, são grandes as chances de episódios violentos como os ocorridos em Sucre.

Leonardo Valente

Após o referendo de hoje, ainda há espaço para o diálogo entre La Paz e Santa Cruz, ou o caminho agora será das decisões unilaterais e da força?

DANIEL CHAVES: É necessário dizer, primeiramente, que a questão não está polarizada entre governo central e departamentos. O debate na Bolívia hoje ocorre entre o MAS (Movimento ao Socialismo), e os cívicos (os comitês cívicos). Ao contrário de Santa Cruz, onde a hegemonia dos cívicos se consolidou fortemente ao longo dos últimos 30 anos, em La Paz e no restante do país há grande pluralidade de movimentos, que mesmo sob a mesma bandeira política, por vezes divergem. A disputa envolve movimentos sociais que pretendem a autonomia comunitária contra movimentos que desejam o molde departamental. Ou seja, são totalmente diferentes. Santa Cruz quer manter as demarcações jurídico-legais da atual Bolívia (porém flexibilizando o centralismo) para impulsionar a sua autonomia econômica, enquanto os movimentos do MAS querem uma revolução total no país.

Em sua opinião, o referendo pode resultar em uma guerra civil em Santa Cruz?

CHAVES: É difícil prever as proporções do que pode acontecer, mas creio que em algum momento haverá tumulto. Parece pouco possível crer no diálogo pacífico, até por que as formas de ação política do país raramente se baseiam em consenso. A sociedade boliviana tem grupos de interesse totalmente divergentes, sem esquecer das questões étnicas, políticas, econômicas e históricas. É uma nova Bolívia que está em formação, essa talvez seja a maior ruptura desde a sua independência.

`Intervenção de Chávez pode incendiar região¿

A Bolívia corre realmente o risco de se dividir ou os autonomistas não pensam em independência?

CHAVES: Alguns autonomistas pensam em independência, sim. O Nação Camba, por exemplo, está francamente convencido de que Santa Cruz não é Bolívia. Entretanto, até agora não se achou nenhuma fala cívica sobre separação territorial. Para além de Santa Cruz, que é a verdadeira matriz do movimento autonomista, é necessário ter em foco o Conselho Nacional Democrático (Conalde), formado por toda a Meia Lua mais o prefeito de Cochabamba e os rebeldes de Sucre. O Conalde já foi chamado de ¿estrutura pré-estatal¿ da nova Bolívia por um dos redatores do Estatuto de Santa Cruz. É também um dos primeiros passos na institucionalização da frente federalista coordenada pelo movimento cívico, cujo objetivo é diminuir os poderes do governo central para trazer maior liberalização da economia e da organização política do país.

Você acredita numa eventual interferência de Hugo Chávez na região, e isso poderia agravar a situação?

CHAVES: Os cívicos de Santa Cruz têm ojeriza total a Hugo Chávez. A idéia de uma intervenção chavista poderia incendiar a região, abrindo o precedente à intervenção também de grupos internacionais regulares e irregulares. Não tenhamos a menor dúvida de que da mesma forma que Evo Morales, com o apoio de Chávez, quer aumentar o controle do Estado sobre a economia do país, existem grupos que estão interessados em manter Santa Cruz ¿livre¿, e não vão medir esforços para isso.

Após o resultado, que papel poderá ter o Brasil e organismos internacionais, como a OEA, para chegar a um acordo entre as partes?

CHAVES: O Brasil deve participar de forma ativa do processo, o quão imparcial o possível. Deve respeitar o processo político boliviano, mas também deve deixar claro que os assuntos domésticos da Bolívia podem resvalar no Brasil. A Bolívia é a nossa maior fronteira. Também não é segredo para ninguém que a nossa fronteira com a Bolívia não consegue reter diversos fluxos ilegais, como drogas, armas, pessoas, etc. O interesse nacional em preservar as suas fronteiras deve considerar com atenção e tranqüilidade eventuais problemas políticos graves como esse, em uma região tão sensível. É também histórica a ausência institucional do Brasil na planície boliviana. A Bolívia não é só Cordilheira. É Amazônia, Chaco, Pantanal. Aliás, justamente a Meia Lua opositora é a área de contato entre Brasil e Bolívia, que toca inclusive a Amazônia em Acre e Rondônia. A OEA deve ser respeitada também como agente da conciliação. Contudo, há de se ter muito cuidado, pois algumas declarações pró-Morales de representantes desta organização diminuíram a sua credibilidade junto aos opositores. Não é momento de pôr mais lenha na fogueira, e sim de conciliar interesses e ter calma.