Título: A moderação abandonou o país faz tempo
Autor: Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 01/05/2008, O Mundo, p. 33
SANTA CRUZ DE LA SIERRA. O historiador Daniel Santiago Chaves, do Laboratório do Tempo Presente da UFRJ, todo dia acompanha a movimentação política na Bolívia. Especialista no assunto, em entrevista ao GLOBO ele disse acreditar no acirramento das tensões em Santa Cruz.
Qual a importância do referendo do dia 4?
DANIEL SANTIAGO CHAVES: Ele tem o objetivo claro de confirmar nas urnas o que garante ser a vontade coletiva crucenha: o fim de uma Bolívia unitária e o início da sua era autonômica. Um modelo centralista em pleno século XXI não tem mais espaço. No entanto, também é preciso ter clareza sobre os critérios deste processo democrático, e qual é a natureza deste. As possibilidades de participação política das massas devem ser um ponto fundamental do debate que venha após este processo de reformulação da Carta Magna da Bolívia, para promover a confiança da população sobre as instituições públicas.
Qual é o quadro que se desenha com essa mobilização pela autonomia?
CHAVES: Uma possibilidade conciliatória é a emergência de uma Bolívia federalista, seja qual for o seu modelo, inclusive um modelo assimétrico, que permita que o departamento de Santa Cruz se mantenha dentro da unidade do Estado boliviano, ao mesmo tempo em que permita maiores liberdades às instituições crucenhas.
Com a suspensão da marcha indígena, o decreto de Morales para recolher armas e a desmobilização do Exército, a situação se abranda ou se acirra?
CHAVES: Existem alguns núcleos de resistência com presença de imigrantes andinos oriundos de um fluxo iniciado na década de 80, quando Santa Cruz era uma terra de oportunidades, como ainda é. A possibilidade de enfrentamento não é pouca. Há de se confirmar que a moderação abandonou a política boliviana faz algum tempo.
Quais os efeitos dessa crise para o Brasil? E do referendo?
CHAVES: A crise é terrível para o Brasil. Essa instabilidade política emperrou os investimentos na pós-nacionalização dos hidrocarbonetos e os frutos já são conhecidos: a produção de gás está no limite da demanda brasileira, sem contar o problema com a Argentina. Além disso, é da Meia Lua (os departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija) que vem o gás, e é também lá que termina o corredor agroindustrial da soja que começa no sul do Brasil. No prisma político, devemos respeitar o processo político boliviano, da mesma forma como devemos compreender que um conflito nas nossas bordas pode gerar fluxos ilegais indesejáveis. A integração sul-americana parte da correta premissa de que a segurança das nações não pode mais ser compreendida de forma monolítica. Crise na Bolívia renderá certamente crise no Brasil, e uma postura inconseqüente que demande a saída de Morales pode se revelar trágica. Há que se respeitar o desejo da maioria da população, não se pode atropelar o voto do povo que o colocou na Presidência, bem como não se pode atropelar o voto autonomista. (S.A.)