Título: Espera tensa na Bolívia
Autor: Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 01/05/2008, O Mundo, p. 33

Às vésperas do referendo de autonomia de Santa Cruz, opiniões se dividem na região

A Igreja Católica pede paz em cada esquina da cidade de Santa Cruz de la Sierra, nas rádios, em faixas e cartazes. Mas, a quatro dias do referendo sobre a autonomia do departamento de Santa Cruz, são ignorados até os apelos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que está em missão na Bolívia para evitar um confronto. Por todas as ruas centrais se agitam bandeiras e buzinas pelo sí no referendo - organizado pelo governo local e rechaçado pelo central - enquanto que nas periferias se organizam "quartéis generais" pelo no.

Pelo sí ou pelo no, em Santa Cruz muitos grupos falam em defender suas posições com o "próprio sangue". Tanto que o governo central decretou, anteontem à tarde, o recolhimento de armas de todos os civis na Bolívia.

- Há um acirramento, uma ameaça de violência da União Juvenil Cruzenha (UJC) e do Comitê Cívico, e alguns até começam a recuar. Mas nós não temos medo. Defenderemos nossas posições, mesmo que haja necessidade de derramarmos nosso próprio sangue - disse ao GLOBO Esteban Alavi, da Federação Sindical de Colonizadores, que organiza protestos contra o referendo.

- Não adianta decretarem o recolhimento das armas. Não temos armas que possam ser recolhidas. Nossa arma é a democracia, que será garantida - reagiu o vice-presidente da UJC, Luiz Vaca Pinto, que participava da manifestação pelo sim ontem à noite.

Pesquisas indicam vitória do "sim"

Ontem eram esperadas mais de 300 mil defensores da autonomia na manifestação, centralizada em El Cristo, monumento do centro da cidade. A manifestação, organizada pelo líderes civis de Santa Cruz, coordenados pelo prefeito (governador) da província, Rubén Costas, marcou o encerramento da campanha pelo "sim" no referende domingo. A votação é considerada ilegal pela Corte Nacional Eleitoral, mas mesmo assim deve contar com a participação de quase um milhão de eleitores. Pesquisas locais indicam que mais de 70% querem a autonomia. O governo central, porém, diz que o estatuto não tem qualquer validade.

Hoje os opositores do referendo prometem misturar as celebrações do 1º de Maio com sua campanha, a partir das 9h. As ameaças de violência fizeram com que a Confederação Indígena de Bolívia (Cidob), ligada ao MAS do presidente Evo Morales, cancelasse uma marcha de 10 mil pessoas que chegaria a Santa Cruz domingo.

- Suspendemos a marcha porque haveria enfrentamentos, inclusive no caminho para Santa Cruz, pelo que apuramos. Não queremos confrontos violentos. Mas não aceitaremos o referendo. Entre os dias 8 e 11 de maio, faremos uma grande assembléia indígena em Santa Cruz, para definir formas de barrar a autonomia, que é racista e discriminatória - disse o vice-presidente da Cidob, Pedro Nuni.

Para o deputado do MAS Raúl Pardo, mesmo com essa decisão, muitos marcharão até Santa Cruz por causa do 1º de Maio:

- Vamos nos manifestar pelo Dia do Trabalho também, e por isso tudo será muito tranqüilo. Não creio que haja violência.

Indígenas afirmam ser nações à parte

Segundo o Censo de 2001, 59% da população boliviana (4,7 milhões) é composta por pobres, cerca de 61% são indígenas (a maioria quéchua e aimará) e há departamentos, como Potosí, onde a pobreza atinge 80% da população. Em Santa Cruz, porém, os números se invertem: a pobreza atinge 38% da população e os indígenas não passam de 40%, a maioria guaranis. Para a maioria dos indígenas, aceitar uma autonomia de Santa Cruz significaria perder todos os repasses públicos provenientes da arrecadação de seu departamento mais rico.

- Somos pela não participação no referendo, porque, primeiramente, ele é inconstitucional. Além disso, o estatuto da autonomia não respeita os direitos indígenas. Tratam-nos como comunidades e, na verdade, somos nações indígenas, com cultura própria. Somos inclusive a maioria no país, mas eles querem ser a máxima autoridade, desrespeitando aqueles que vivem nas terras altas - disse Nuni.

Os grupos que defendem a autonomia de Santa Cruz afirmam que não há nenhuma possibilidade de a autonomia ser descumprida:

- Santa Cruz é o departamento que mais produz em toda a Bolívia. Não é justo que repassemos quase toda a nossa arrecadação e fiquemos sem saúde pública, educação, serviços básicos. Isso não é democracia. Queremos autonomia e democracia. Os indígenas estão incluídos em nosso estatuto, que prevê uma representação para eles - disse Luiz Vaca Pinto.

O dualismo político se manifesta em cada esquina de Santa Cruz. Muitos indígenas apóiam a autonomia. É o caso de Pablo Sanchez:

- Não é possível que continuemos assim. Tudo é difícil na Bolívia por causa da centralização. Até para tirar documentos é preciso ir até La Paz.

Juan Spinoza discorda:

- Querem é concentrar mais o dinheiro arrecadado com o gás, o petróleo e a agropecuária com os ricos. Vivo em Santa Cruz e não vejo nenhum problema com a centralização. O que falta aqui são salários melhores.

Para Costas, depois do referendo "nascerá uma nova República, uma Segunda República não centralista".