Título: Memória seletiva
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 06/05/2008, O País, p. 4

O presidente Lula parece estar testando o limite de sua popularidade, vendo até que ponto pode chegar sem suscitar reações negativas na maioria do eleitorado. Ou então resolveu desafiar a opinião pública, que refletiria apenas o pensamento da elite, pela qual se sente rejeitado, apesar de todos os avanços econômicos. Ou então é que nem o Chacrinha, veio para confundir. Não há outra explicação para as verdadeiras provocações que vem fazendo, dia após dia, nos comícios, assim definidos pela ministra Dilma Rousseff, para lançamentos de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A própria existência desses comícios em si já é uma afronta à legislação eleitoral. Mas o que dizer de seus discursos, cada vez mais megalômanos e com sutilezas políticas que, se escapam da opinião nacional, não passam despercebidos pelos formadores de opinião?

Ontem mesmo repetiu uma frase emblemática dos tempos da ditadura do governo Médici. "Ninguém segura este país", alardeou Lula ao falar do grau de investimento que a agência de risco Standard and Poor"s deu ao Brasil. Certamente não foi sem querer. Como anteriormente Lula já elogiara de público o planejamento dos governos Médici e Geisel.

Pode ter sido uma maneira sutil de enviar recado aos militares, que parecem incomodados ultimamente com as reservas indígenas, o aumento de salário, as transgressões constantes do MST, toleradas pelo governo em nome de uma democracia que vai sendo corroída pela leniência com que a quebra da ordem é tratada.

Por outro lado, Lula considera que uma das tarefas de sua gestão é levantar a auto-estima do povo brasileiro, e volta e meia retoma medidas que parecem voltar no tempo. Em 2004, a secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica (Secom) lançou uma campanha para estimular o uso de objetos, de símbolos e de ações que exaltassem a data de 7 de setembro, incentivando o sentimento de patriotismo do povo brasileiro.

O marqueteiro Duda Mendonça, que ainda não surgira como envolvido no escândalo do mensalão, preparou uma campanha publicitária cujo slogan era "Ninguém segura a força desta nação".

A frase repetida ontem pelo presidente Lula foi criada pela famigerada AERP, a assessoria de relações públicas chefiada pelo coronel Octavio Costa, que tinha por objetivo "motivar a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento", "fortalecer o caráter nacional", estimular o "amor à pátria", a "dedicação ao trabalho", a "confiança no governo" e a "vontade de participação". Muitos slogans foram criados na época, sendo "Ninguém segura o Brasil" o mais famoso, e o "Ame-o ou Deixe-o", o mais odioso.

O mote do presidente Lula de que "nunca antes neste país" aconteceram coisas tão boas tem a ver com o espírito daquela época, que hoje ele exalta, uma obsessão da imagem grandiosa do Brasil, a exaltação que tudo aqui era "maior" e "melhor". E essa obsessão com os governos militares vem de longe.

Basta lembrar que José Dirceu, quando ministro-chefe do Gabinete Civil, rebateu a comparação que faziam com o general Golbery do Couto e Silva, a eminência parda do governo Geisel, dizendo que o que ele queria mesmo era "ser o Reis Velloso", numa referência ao Ministro do Planejamento criador do II Plano de Desenvolvimento Econômico, que Lula não apenas elogia, mas com o qual compara indevidamente o PAC.

Imaginem o PT na oposição e algum político, de preferência do PSDB, fazendo esse tipo de comparação com valores e referências da ditadura militar. Ou então que um presidente qualquer dissesse, como Lula disse recentemente, que os governos de Médici e Geisel não podem ser julgados "por um gesto ou dois, mas sim pelo conjunto do que fizeram".

O governo Lula não tem apenas a memória seletiva. Há também a "herança maldita" seletiva. Na parte econômica, a continuação e até mesmo o aprofundamento das medidas ortodoxas nos levaram ao grau de investimento seguro, mas o governo atribui todas as virtudes à sua gestão, esquecendo-se do que foi feito antes. Como Lula mesmo repete, há 500 anos ninguém faz tanto quanto ele pelo país.

Mas ontem a ministra Dilma atribuiu à "herança maldita" o fato de o PAC não deslanchar. Segundo ela, o governo Lula, já no seu sexto ano de existência, ressente-se da má qualidade dos projetos de infra-estrutura herdados dos governos anteriores.

Quando dá certo, como na economia, é por virtudes intrínsecas ao governo popular. Quando não funciona, as causas são extrínsecas.

Ao mesmo tempo, Lula continua a incensar a tese do terceiro mandato consecutivo. Para quem se diz tão visceralmente contrário a ele, o presidente Lula poderia ser considerado um desastrado por insistir em afirmar em público que não é possível a nenhum político realizar tudo o que é necessário em "quatro, oito, dez" anos, como voltou a fazer ontem.

Há sempre um assessor muito próximo para garantir que não existe segunda intenção nesses comentários, e que o presidente Lula sempre se surpreende quando os jornais editam sua fala dando destaque justamente a esse ponto. Como Lula pode ser tudo, menos ingênuo politicamente, não há por que acreditar que ele não queira um terceiro mandato.

Assim como seus adversários, para tentar constrangê-lo, fazem questão de repetir que respeitam a palavra de Lula e por isso não acreditam que ele aceitasse concorrer a um terceiro mandato, Lula repete sempre que possível que um terceiro mandato seria uma afronta à democracia, mas deixa a porta aberta para que o assunto não morra. Mas nada indica, no momento, que o Congresso aceite fazer essa mudança.