Título: Grau do surto
Autor: Leitão, Miriam
Fonte: O Globo, 07/05/2008, Economia, p. 22

A sandice subiu de grau em Brasília. Num mesmo dia, o ministro Paulo Bernardo disse que haverá um fundo soberano para financiar as empresas brasileiras no exterior a juros baixos e que será criada uma subsidiária do BNDES com o mesmo objetivo; o presidente Lula disse que vai salvar uma empresa que se afundou por sua única culpa e ainda circula a notícia de criação de uma nova Petrobras.

Vários países fizeram fundo soberano com seus excessos de poupança - o que não é o nosso caso; não temos excesso de poupança. O pior problema com o nosso fundo soberano é que, até agora, não se sabe com que dinheiro ele será constituído. Sabe-se que sairá em junho e sabe-se o objetivo: o ministro do Planejamento disse que será para "financiar" e "apoiar" as empresas brasileiras no exterior.

Financiá-las no exterior isso o BNDES já faz. Olhe só o metrô de Caracas, construído com financiamento do banco, e vários outros projetos. Já é com um dinheiro mais barato do que o Tesouro paga para se financiar. Mas o ministro avisou que o fundo foi um pedido do presidente Lula durante uma reunião para discutir a nova política industrial. E explicou que se uma empresa for "vender serviços, fazer incorporação de outras" poderá ser financiada por este mecanismo. Disse também que está se pensando em criar uma subsidiária do BNDES para fazer o mesmo trabalho.

Deu para entender? Difícil! O BNDES já faz um determinado trabalho, ainda assim, será criado um fundo - com dinheiro não se sabe de onde, mas provavelmente das reservas - e uma subsidiária de um banco estatal para oferecer o mesmo financiamento. O dinheiro do BNDES vem, em parte, do Fundo de Amparo ao Trabalhador e vai financiar compras de empresas brasileiras ou outros negócios no exterior. Será, mais do que nunca, o Fundo de Amparo a Empresários... e a alguns sindicalistas.

Quando um país atinge o grau de investimento, as empresas daquele país têm a vantagem de se financiar a custo mais baixo. E isso é tudo que o Estado deveria fazer por elas; já é o suficiente. Hoje uma grande companhia brasileira tem crédito onde quiser e paga juros mais baixos que nunca. Para que financiá-las com as reservas ou com o FAT quando elas correm risco externo?

A idéia, felizmente ainda não confirmada, de se criar uma nova Petrobras tem o mesmo grau de surto. Como a Petrobras quer que todas as reservas do pré-sal sejam concedidas apenas a ela, e isso é impossível, porque é uma empresa de capital aberto, o governo estaria pensando nessa idéia brilhante. Seria criada uma nova Petrobras, só estatal, que teria o monopólio da exploração do petróleo e do gás naquela faixa de profundidade. Se o governo fizer isso, estará recriando o monopólio que foi extinto pela Lei do Petróleo. O que existe hoje é o monopólio da União, e ela concede o direito de exploração em campos específicos, através de leilão. Se for criada uma nova empresa para ter esse monopólio, a União estará abrindo mão dele.

Como se todas essas idéias já não fossem estranhas o suficiente, em Manaus, o presidente Lula afirmou ontem que "o governo tem tentado criar as condições para salvar a Gradiente". Disse que o companheiro Luciano Coutinho está encarregado disso e "vamos tentar fazer a nossa parte".

Governos não devem salvar empresas em dificuldade, e foi nessa trilha que andou quando negou salvação à Varig, por exemplo. Por que salvar a Gradiente? Porque o empresário Eugênio Staub é amigo do presidente? Ela está quebrando no melhor momento para o setor. Como uma empresa de eletroeletrônicos, instalada numa zona livre de impostos, com benefício do dólar baixo na importação dos componentes da sua montagem, consegue quebrar numa hora como esta? Não há de ser culpa do BNDES; do governo. Por que os contribuintes deveriam pagar por isso?

Com idéias com tal grau de insensatez é que o Brasil pode abrir caminho para perder o grau de investimento. Tudo isto: "política industrial", "apoiar empresa brasileira no exterior", "salvar empresa" significa gasto público. E ampliação desses gastos é o que o governo não deveria fazer agora. Primeiro, porque eles estão aumentando acima do crescimento do PIB; segundo, porque este é o ponto fraco do país, reconhecido até pela agência que nos concedeu o grau de investimento; terceiro e mais importante: o contribuinte não está disposto a continuar indefinidamente pagando a conta de gastos públicos crescentes.

Como se todas essas decisões e declarações já não fossem suficientes para provar que há um certo grau de surto no governo brasileiro neste momento, ainda veio a declaração do presidente da República sobre mulheres.

Lula disse que a mulher quer quatro coisas; pela ordem: casa, casar com homem bonito e trabalhador, carro e computador. O presidente da República apequena, assim, o horizonte dos sonhos das mulheres a alguns bens materiais e um casamento. Nada sobre todos os outros avanços e conquistas que as mulheres têm conseguido duramente. Tudo o que ele pensa sobre as mulheres cabe no mais rasteiro dos estereótipos. O presidente revelou, mais uma vez, sua visão preconceituosa sobre a mulher. Queremos mais que isso, presidente! São maiores, mais amplos, mais numerosos e complexos nossos desejos e possibilidades.