Título: Lula se acha
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 11/05/2008, O País, p. 4

São Tomás de Aquino considerava a soberba a raiz de todos os pecados. Na política, ela leva à arrogância e ao abuso do poder, é o contrário do espírito democrático. O presidente Lula, do alto de uma crescente arrogância alimentada pelos recordes de popularidade, está "se achando", como dizem os mais jovens: se acha em condições de dar palpites sobre tudo, de decretar quem merece perdão e quem merece críticas e - sobretudo e mais perigoso - se acha com poderes para escarnecer da legislação em vigor no país. Sexta-feira, em Salvador, chegou a dizer um palavrão em público - e não é a primeira vez - criticando a lei eleitoral que dificulta suas viagens pelo país. Em verdadeiros comícios políticos para lançamento de obras do PAC, ele finge ensinar ao povo como deve se comportar para não ferir a lei eleitoral.

Quando a torcida organizada começa a gritar o nome da ministra Dilma, ele se faz de desentendido, como outro dia em Manaus: "(...) a gente não pode transformar num ato de campanha. É um ato oficial, é um ato institucional. (...) vocês viram que eu, por cuidado, não citei nomes. Vocês é que, de enxeridos, gritaram nomes aí. Eu não citei nomes".

Nesse mesmo comício em Salvador em que disse o palavrão, o presidente resolveu criticar o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público, por supostos entraves que imporiam à execução de obras, e defendeu até a alteração da Lei das Licitações, uma legislação que foi criada depois dos escândalos do governo Fernando Collor, exatamente para coibir a corrupção.

"É preciso mudar. Não pode continuar do jeito que é, porque aqui no Brasil se parte do pressuposto de que todo mundo é ladrão", decretou o presidente, para quem "o TCU, na verdade, quase que governa o país, porque diz que obra pode, que obra não pode ser executada".

O problema é que o presidente Lula - que já passou a mão na cabeça em público dos mais diversos políticos acusados de corrupção ou de gastos indevidos, desde "o nosso Delúbio" até o famigerado Severino Cavalcanti ou o governador do Ceará, Cid Gomes, que levou a sogra para passear na Europa por conta do Erário - se incomoda quando os organismos institucionais atuam para fazer o contraponto exigido pela democracia, que é o sistema de governo de pesos e contrapesos para controlar o equilíbrio entre os Poderes.

Foi o TCU, um órgão do Poder Legislativo, por exemplo, que levantou os gastos exorbitantes dos cartões corporativos e exigiu maior transparência nas prestações de contas.

Agora mesmo a revista "Época" revela que o TCU está investigando, pela primeira vez, as contas secretas com cartões corporativos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ligada à Presidência da República, e descobrindo uma série de gastos com notas frias e outros que simplesmente não têm comprovantes, a pretexto de pagamento de informações.

Com relação à Lei de Licitações, no mesmo momento em que o presidente começa uma campanha pública para alterá-la, estamos diante de um dos maiores escândalos dos últimos tempos, com liberações irregulares de verbas para prefeituras pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) envolvendo um esquema de fraudes em licitações que inclui membros do conselho da estatal indicados por políticos sindicalistas, como o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho.

Na sua compulsão oral, como bem definiu a senadora Kátia Abreu, o presidente Lula se mete a dar palpites em tudo e, no espaço de uma semana, nos deu novas mostras de como pode ser incoerente por não se dar limites.

Num dia, criticou "a mídia", que estaria fazendo sensacionalismo e condenando os pais antes do julgamento, na cobertura do caso do assassinato da menina Isabella Nardoni.

Não passou nem uma semana e o mesmo Lula condenou o júri popular que absolveu, num segundo julgamento, o fazendeiro Vitalmiro Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do assassinato da freira Dorothy Stang.

O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, colocou as coisas nos devidos lugares ao rebater a tese presidencial de que a absolvição prejudicaria a imagem do Brasil:

"Quer dizer que o resultado da condenação é que atenderia à boa imagem do Brasil? E se de fato essa pessoa for inocente? Eu não disponho de dados, talvez o presidente disponha."

São diversos fatos, acontecidos nos últimos dias, que repetem comportamentos do presidente num crescendo de auto-estima que se acentua à medida que as pesquisas de opinião parecem dar a ele uma popularidade inatacável.

Não há dúvida de que grande parte desse desempenho se deve a seu carisma pessoal, à sua maneira direta de se dirigir ao distinto público, numa ligação que poucas vezes foi registrada na vida política do país.

Mas há a vida real que segue, e o patrimônio mais valioso de seu acervo político é a melhoria de vida dos mais necessitados, mesmo que se discuta as maneiras como ela está sendo alcançada, se é uma situação transitória ou lastreada em mudanças estruturais.

Seja como for, essa melhoria de vida está sendo ameaçada pela inflação, que afeta mais justamente as classes de renda mais baixas. Não abrir os olhos para esse perigo é uma das conseqüências da soberba.