Título: Etanol do Brasil não compete com alimentos
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Fonte: O Globo, 11/05/2008, Economia, p. 39
SOB PRESSÃO: Pascal Lamy alerta que restrição à exportação de produtos agrícolas pode agravar crise no setor
Diretor-geral da OMC afirma que solução para a alta de preços alimentícios passa pela abertura do comércio
GENEBRA. Se as atuais regras do comércio internacional forem aplicadas ao pé da letra, o Brasil pode taxar suas exportações de alimentos à vontade, como fez recentemente a Índia com sua produção de arroz. E pelo tempo que quiser, afirma o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), o francês Pascal Lamy. Porém, quando tira o chapéu de diretor da OMC e coloca o de economista, ele é categórico no sentido inverso. Limitar exportações, isto é, a oferta de produtos no mercado internacional, justamente num momento em que os preços das commodities estão em disparada, só vai ter um efeito: piorar a crise. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Lamy analisa a atual crise e defende que abertura do comércio internacional é parte da solução do problema. Ele também defende abertamente o etanol brasileiro, dizendo que, pelos números que tem, "o etanol não está competindo com alimentos".
Deborah Berlinck
A crise dos alimentos fez voltar o debate sobre segurança alimentar, com críticos dizendo que é a prova de que países não podem depender de comércio internacional para alimentar sua população. O que o senhor acha?
PASCAL LAMY: Esta crise dos alimentos é multidimensional. Há seca e um nível de estoque de alimentos historicamente baixo. Em alguns países, há competição de alimentos com combustíveis. Há preço da energia e mudança na dinâmica dos países em desenvolvimento que levaram a um aumento de consumo de cereais, já que as pessoas estão ficando menos pobres. Parte da crise está relacionada ao comércio, pois, pelas regras atuais, tem sido possível distorcer o comércio agrícola. Um dos objetivos da Rodada de Doha é dar um passo maior (para reduzir as distorções). Para mim, o problema fundamental da crise é o desajuste entre oferta e demanda.
Qual é a solução?
LAMY: É preciso aumentar a produção. E a linha de transmissão entre oferta e demanda é o comércio.
O comércio resolveria esta crise completamente?
LAMY: Claro que não. Uma das razões é que a capacidade de produção nos países em desenvolvimento é insuficiente. Não se investiu em agricultura. Não se exploraram as vantagens comparativas. Poderiam ter explorado se o jogo das regras do comércio internacional fosse justo. É preciso atualizar os sistemas de armazenamento para produzir alimentos. Isso talvez deva ser feito com ajuda do Banco Mundial e da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura). Comércio é apenas parte do problema e parte da solução. O problema não é muito comércio agrícola: é termos muito pouco comércio.
Voltando à segurança alimentar, essa noção de que cada país deve assegurar, mesmo com subsídios, alimento para sua população...
LAMY: Se países em desenvolvimento precisam de apoio e subsídios para aumentar a capacidade de sua produção agrícola, a OMC permite isso. Os países em desenvolvimento têm amplo espaço dentro das regras do comércio para subsidiar em agricultura.
O senhor está dizendo que é o que eles têm que fazer agora?
LAMY: As regras da OMC não impedem os países em desenvolvimento de aumentarem sua produção com subsídios à irrigação, por exemplo, ou pesquisa, treinamento, ou esquemas para melhorar capacidade.
Se eles começarem a subsidiar agora, isso pode atrapalhar as negociações para abertura do comércio agrícola?
LAMY: Desde que se respeitem as regras da OMC, está bom para mim! O problema das negociações são os subsídios às exportações agrícolas e os subsídios domésticos. E quem está sob foco dos holofotes? EUA, União Européia, Japão, Suíça, Noruega. Não é Índia, China, Brasil ou Senegal.
Vários países, como Brasil, Argentina, Vietnã e Índia, bloquearam ou limitaram suas exportações, para assegurar comida às suas populações. O que o senhor acha?
LAMY: Meu cérebro tem três partes. A maior parte, do diretor-geral da OMC, vai olhar as regras. E elas dizem que cotas à exportação são proibidas, com exceção de emergência com crise alimentar. Não há menção de restrições à taxas de exportações.
Então o Brasil poderia aplicar taxas de exportação o tempo que quisesse?
LAMY: No momento, não há regra alguma na OMC que proíbe taxar exportações. Mas países-membros estão extremamente divididos. Importadores de alimentos querem menos restrições às exportações, para assegurar que poderão contar com os mercados internacionais (de alimentos). Já os países exportadores de alimentos não concordam.
E as outras partes do seu cérebro?
LAMY: Uma pequena parte do meu cérebro é o economista, que tem como reação racional o seguinte: se tem um problema com preço dos alimentos, melhor aumentar a oferta que restringi-la. Caso contrário, você está fazendo o problema piorar.
Estão restringindo as exportações, mas estão garantindo ofertas para suas populações, não?
LAMY: Mas estão restringindo oferta internacional. Isso explica por que o mercado internacional é tão volátil: porque o mercado de oferta é pequeno. Há outra parte do meu cérebro, que é a política, que está preocupada com seu eleitorado. Se o meu povo está nas ruas protestando por causa do aumento dos preços dos alimentos, eu tenho que responder a ele e não à população do vizinho.
Tudo isso não alimenta quem diz que agricultura não pode ser tratada como comércio qualquer?
LAMY: Três quartos dos membros da OMC são países em desenvolvimento. Eles têm lutado muito nos últimos 20 anos para assegurar que as regras que são aplicadas para carros, sapatos, pneus podem ser de alguma forma aplicáveis à agricultura. Francamente, dado o peso dos países em desenvolvimento, não vejo como mudar isso.
Especulação nos mercados agrícolas tem sido uma das razões para elevação dos preços. Qual é a solução?
LAMY: Onde há mercado, há especulação. É engraçado: só se ouve sobre especulação quando o preço aumenta. Nos últimos 20 anos os preços baixaram também por conta de especulação. Sempre se busca um bode expiatório quando se tem problema.
O senhor então concorda com o presidente Lula, que diz que a razão da crise é que há mais pobre comendo?
LAMY: Claro! Por definição, são os pobres que gastam a maior parte de seu dinheiro com comida. Quando os preços aumentam, são os mais atingidos.
Um economista americano argumenta que a maioria dos pobres não usa alimentos obtidos no mercado internacional. Então, o aumento do preço dos alimentos estaria afetando mais pessoas nos países ricos.
LAMY: Não concordo com esta noção de que os países pobres estão desconectados dos mercados internacionais. Eles estão cada vez mais conectados. Compare com a situação há 30 anos, quando grande parte das populações dos países em desenvolvimento estava em zonas rurais. Eles plantavam, produziam para seu próprio consumo e podiam mudar de um tipo de plantação para outra. Hoje a maioria da população está em zonas urbanas. É uma das razões pelas quais a volatilidade nos preços dos alimentos vai aumentar no futuro. Volatilidade é o que acontece quando o tamanho do mercado aumenta e o ajuste é mais difícil.
Como evitar alta volatilidade nos preços?
LAMY: Isso é muito difícil. Estoques e armazenamento são uma das soluções, desde que você não perca mais alimentos por causa de armazéns precários. A longo prazo, a única solução é ajustar oferta e demanda. Há um potencial para aumentar capacidade de produção nos países em desenvolvimento. Mas isso só vai acontecer se o aumento dos preços levar fazendeiros a produzirem mais.
Esta crise acontece num mal momento para o senhor, que está desesperado para fechar o acordo da Rodada de Doha?
LAMY: Pelo contrário. A produção insuficiente nos países em desenvolvimento é, em parte, resultado de políticas que distorcem o comércio internacional. Isso mostra que subsídios e tarifas que distorcem o comércio precisam ser reduzidas.
O Brasil quer incluir o etanol na lista de produtos ambientais na OMC, sujeita à maior redução de tarifas. O que o senhor acha?
LAMY: É uma questão para negociação. Como diretor-geral, preciso ser neutro. Na questão alimentos versus petróleo, estou impressionado como as pessoas são sistemáticas: ou é tudo bom, ou alguns meses depois, tudo ruim. Olhei os números do Brasil, que mostram claramente que etanol não está competindo com alimentos. Mas é preciso olhar toda a cadeia para ver se o etanol tem mesmo sentido sob o ponto de vista ambiental. E isso não é algo que se pode decidir assim.
O Brasil, então, está sendo injustamente criticado pelos que dizem que o etanol está provocando aumento de preços?
LAMY: Os críticos que fazem uma condenação geral estão errados, como também os entusiastas, que antes diziam que tudo isso era formidável.
O Brasil tem ambição de ser grande exportador de etanol...
LAMY: Se a questão é se o etanol brasileiro baseado em cana-de-açúcar é mais respeitoso ao meio ambiente que o etanol à base de milho dos EUA ou União Européia, eu digo: provavelmente sim. Mas meu negócio é comércio.
Negociadores na OMC fracassaram em cumprir vários prazos para chegar a um acordo da Rodada de Doha. Segundo o embaixador uruguaio, se um acordo não for fechado este ano, pode-se levar outros 20 anos. É um exagero?
LAMY: Uma negociação como esta é um processo de acumulação: 152 membros com vários grupos de interesses têm que chegar a um acordo em 20 tópicos.
Então não há chance de se chegar a um acordo este ano?
LAMY: Acho que é possível. Há intenção, um processo com condições políticas e técnicas. É um processo muito complexo. Estamos chegando lá.