Título: Uma questão delicada
Autor: Amaral, Solange
Fonte: O Globo, 09/05/2008, Opinião, p. 7

"Se um homem adotar uma criança e der seu nome a ela como filho, criando-o, esse filho crescido não poderá ser reclamado por outrem", diz o artigo 185 do Código de Hamurabi, um dos mais antigos conjuntos de leis da Humanidade. No Brasil, o processo de adoção de um filho ainda carece de ajustes, que devem chegar com a aprovação da Lei Nacional de Adoção, em tramitação no Congresso Nacional.

Essa iniciativa é extremamente importante no processo de garantia de direitos de nossas crianças e adolescentes. Um ponto admirável a ser destacado é a colocação da adoção como um direito da criança e do adolescente. Para que isso seja respeitado, a lei estabelece prazos para que os atores do direito (Ministério Público e Varas da Infância) se pronunciem e decidam sobre as etapas envolvidas no afastamento ou na reintegração familiar.

A determinação desses prazos representa uma das principais restrições à nova lei. Argumenta-se que os motivos que levam ao afastamento da criança e/ou adolescente de sua família biológica são singulares. Portanto, o tempo de avaliação e o de decisão implicados nos processos de destituição do poder familiar, tornando a criança apta a ser adotada, também deveriam ser.

A essência desse cuidado é que a grande maioria das famílias objeto de ações dessa natureza vive em situação de pobreza e teria na pobreza o principal fator para a falta de cuidados com seus filhos. Por outro lado, se colocamos o menor como alvo prioritário de atenção e proteção devemos ter no prazo de sua institucionalização e conseqüentemente da sua falta de convivência familiar o principal foco de preocupação. Políticas públicas eficazes à proteção da criança e do adolescente devem ser múltiplas e não excludentes. O princípio norteador de todas deve sempre ser o direito - e a urgência - da criança e do adolescente a uma vida familiar e comunitária.

Outra questão de suma importância é a transparência dos dados envolvidos nesse processo. Um princípio universal do acompanhamento e avaliação das políticas públicas é o da transparência de seus dados. Quantas crianças e adolescentes estão hoje vivendo em abrigos? Quantas recebem algum tipo de atenção e visitas de suas famílias biológicas? Quantas pessoas existem hoje interessadas em adoção? A obrigatoriedade da criação de cadastros por comarca, por estado e nacional possibilitará que milhares de crianças e adolescentes saiam do anonimato. Possibilitará também a circulação de informações necessárias para a criação de serviços de apoio e estímulo a adoção tardia ou de crianças com algum tipo de característica que limite sua oportunidade de ter uma família.

São muitos os tópicos envolvidos no projeto de lei que merecem atenção e debate, mas sua essência é merecedora de todo aplauso. A vida em família é um direito da criança e do adolescente. Os vínculos familiares são criados e garantidos pelo cuidado, a atenção e o amor independentemente dos laços biológicos.

A complexidade envolvida em todo esse processo - em se fazer justiça (não é esse sempre o motivador das legislações?) - jamais deve deixar de ser objeto de reflexão e extremo cuidado, mas não pode ser impeditivo de tomada de decisões. É no lapso de tempo de algumas decisões ou mesmo de generalizações em torno de direitos que centenas de crianças e adolescentes tomam para si a decisão e ocupam as ruas em vez de casas.