Título: Mais cana do que água
Autor: Ribeiro, Erica ; Rosa, Bruno
Fonte: O Globo, 09/05/2008, O globo, p. 33

Etanol passa hidrelétricas e se torna 2ª maior fonte de energia do país

Erica Ribeiro e Bruno Rosa

Os produtos derivados da cana-de-açúcar, como o etanol, ultrapassaram as usinas hidrelétricas pela primeira vez e se tornaram a segunda maior fonte de energia do país em 2007. Ano passado, esses derivados tiveram participação de 16% na matriz energética, ocupando a segunda posição, enquanto energia hidráulica e eletricidade tiveram 14,7%, segundo dados preliminares do Balanço Energético Nacional, divulgado ontem pela estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Em 2006, as participações foram de 14,5% e 14,8%, respectivamente. O petróleo e seus derivados continuaram em primeiro lugar, com 36,7%, mas houve queda em relação aos 37,8% de 2006.

A matriz está ficando mais limpa. A participação das diferentes fontes de energia renovável, como o etanol, aumentou de 44,9% para 46,4% em 2007. As não renováveis, como petróleo, caíram de 55,1% para 53,6%. A oferta interna de energia cresceu 5,9%, levando-se em conta o consumo por cidadãos, empresas e setor de transformação (coquerias, carvoarias, refinarias etc.). O avanço foi maior que o do Produto Interno Bruto (PIB), de 5,4%.

Pelo levantamento da EPE, o petróleo manteve a auto-suficiência alcançada em 2006, com produção de 1,751 milhão de barris diários e consumo de 1,734 milhão. A queda do petróleo é explicada em boa parte pelo recuo no consumo de gasolina, em função de um aumento de 46,1% no de álcool hidratado (usado diretamente como combustível nos tanques). Além dos melhores preços do álcool nas bombas em 2007 - este ano, já se verificam reajustes -, o avanço do etanol foi justificado pelo aumento da frota de carros bicombustíveis no país.

Dados da Anfavea, associação dos fabricantes de veículos, apontam que em abril o Brasil tinha cinco milhões de veículos flex. Também contribuíram a ampliação da área colhida de cana no Brasil em 8,2%, no ano passado; o aumento de 45% na produção de álcool hidratado; e o aumento da parcela obrigatória de adição de álcool anidro adicionado à gasolina, de 23% para 25%.

O especialista Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), diz que o álcool está com preços mais competitivos:

- O Brasil já tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. Além da maior demanda pelo álcool para os carros, grande parte da produção de etanol passou a ser contabilizada oficialmente com a implantação da nota fiscal eletrônica. A redução da carga tributária, com o menor ICMS, também ajudou. Mais barato, o álcool tomou espaço da gasolina. Quem tirou espaço da água foi o gás. Há uma tendência de que a cana continue avançando.

Com a alta de 46,1%, o consumo de álcool hidratado atingiu 10,4 bilhões de litros em 2007. O anidro (usado na mistura com a gasolina) avançou 19,7%, para 6,2 bilhões de litros. Já o consumo de gasolina premium (que não tem álcool) caiu 3,9%, para 18 bilhões de litros.

- Acredito que seja uma tendência irreversível (cana à frente da energia hidrelétrica). É um ano histórico. Temos três fontes que serão a base da matriz: petróleo, cana e hidráulica, e nas três somos auto-suficientes - disse o presidente da EPE, Maurício Tolmasquim

Para ele, a cana terá cada vez mais importância na matriz energética brasileira, mesmo com previsão de novas hidrelétricas, como os megaprojetos do Rio Madeira e de Belo Monte.

Perguntado sobre os questionamentos de que a produção de etanol pode comprometer os preços dos alimentos, Tolmasquim refutou as críticas:

- No Brasil, temos solo para aumentar a produção de etanol sem afetar a produção de alimentos.

Analistas: alimentos não sofrem pressão

Especialistas em inflação não acreditam que o avanço da plantação de cana vá pressionar o preço de outras culturas, como a da soja. Segundo Luiz Roberto Cunha, professor de economia da PUC-RJ, o Brasil tem muito espaço para agricultura. O máximo que poderia acontecer, diz, é a transferência de plantações para outras localidades:

- Mas nem de longe pode acontecer o que houve nos Estados Unidos, onde a plantação de milho para a produção de etanol afetou o preço de outras culturas.

Geraldo Barros, coordenador científico do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, acredita que os preços na agricultura já estão pressionados, e não será a cana que vai mudar o cenário:

- A agricultura representa menos de 4% de toda a área plantada do país. Nem se esse índice dobrasse os preços de outras culturas seriam pressionados. Para aumentar o espaço de plantação, é preciso haver investimentos de, no mínimo, R$80 bilhões por ano. Além disso, a cana-de-açúcar hoje ocupa espaço de pastagens degradadas, que não estão sendo usadas nem por gado.

Segundo Tolmasquim, da EPE, o consumo de energia de diferentes fontes cresceu 13,5 milhões de toneladas e, do total, 70% são de fontes renováveis. A energia renovável que mais avançou foi a da cana: 41,4%. Foi identificada uma alta de 8,6% no uso de carvão mineral, com o aumento da produção e do consumo de coque metalúrgico para aplicação na indústria siderúrgica. Por outro lado, o consumo de urânio caiu 9,9%, em função das paradas das usinas Angra 1 e Angra 2 ano passado. Tolmasquim afirmou que um grupo interministerial discute a proposta de um novo modelo nuclear, em que poderiam ser feitas parcerias com a iniciativa privada na prospecção de urânio.

Na opinião de Pires, do CBIE, há ainda grande espaço para a geração de energia a partir do bagaço da cana - um segmento que tem potencial para chegar ao volume de Itaipu (mais de 90 milhões de megawatts-hora), apesar de a produção acontecer durante sete meses por ano. O consultor David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP), endossa os argumentos. Segundo ele, o etanol, além de ser a energia do futuro, é limpa.

Tolmasquim garantiu ontem que não há risco de apagão em 2010.

PETRÓLEO BATE NOVO RECORDE E VAI A US$124,61, na página 34