Título: Erros argentinos
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 06/05/2008, Economia, p. 20

A Argentina está em marcha batida para o passado pelas absurdas escolhas feitas pelo casal Kirchner. A maneira como eles manipulam os índices de inflação é tão descarada que faz parecerem sofisticados os "expurgos de produtos atípicos" dos anos 70 no Brasil. Lá simplesmente criaram um índice fictício de inflação. Hoje é um dia decisivo em que produtores rurais e governo vão discutir uma fórmula para resolver o conflito entre eles.

As exportações de carne não foram retomadas ainda. Ontem, o governo publicou no seu boletim oficial que elas voltarão ao normal, mas os produtores, depois de muitas idas e vindas, ainda desconfiam. Hoje, os dois lados vão se sentar em busca de soluções para a briga que já dura mais de um mês. O principal impasse diz respeito às retenções que vêm sendo feitas à produção de exportadores. As negociações continuam, mas as tensões também. A CGT disse que a Argentina pode estar vivendo uma espiral inflacionária e apelou aos empresários para abrirem mão de margem de lucro. Como sabemos - e os argentinos também - esses apelos e medidas artificiais não funcionam. O risco é concreto de a Argentina sucumbir à alta inflação.

Ninguém acredita nos índices. Oficialmente a inflação está em 9% no ano, mas, em geral, os economistas acham que deve mesmo estar em 30%. A inflação, como se sabe, não é o que aparece no índice, mas o que se sente. Pesquisas feitas por jornais e institutos de opinião mostram isto: a maioria absoluta dos argentinos acha que a inflação está subindo. Mesmo se o número for inventado, não dá para esconder a alta de preços quando se vai fazer as compras. Por essa insatisfação é que a revolta dos produtores rurais foi apoiada por quem nunca viu uma vaca na urbaníssima Buenos Aires.

O colunista Joaquin Morales Sola disse que algumas pessoas do governo começam a admitir que a inflação está, na verdade, em torno de 18% e estudam idéias para um pacote antiinflacionário. O problema inicial desse pacote é como combater algo de que não se sabe o tamanho. A destruição da credibilidade do Indec (o IBGE deles) criou esta dificuldade: não se sabe a dimensão do problema a combater. A questão secundária é que tipo de remédio usar. O fato é que, como já era previsto, a inflação virou o principal problema político do governo Kirchner II.

Em outra parte do retrocesso argentino, Nestor Kirchner está fortalecendo o aparato sindical-partidário-governamental que funcionava na época peronista, o qual misturava a estrutura de sindicatos pelegos, com a máquina do governo, e a nomenclatura do Partido Justicialista. Parece familiar? Bom, aqui se tenta um arremedo disso, e o governo Lula está avançando perigosamente na construção desse tripé atrasado, com a nomeação de sindicalistas para o governo, com o uso político dos sindicatos.

O ex-presidente Kirchner disse que abriria um café literário no governo da mulher para ficar bem distante do poder, mas está, na verdade, cada vez mais poderoso. Como candidato único e numa eleição extemporânea, virou presidente do Partido Justicialista. Nas reuniões, discute-se tudo, menos literatura.

A presidente Cristina Kirchner, com seus hábitos vespertinos de trabalho (ela só dá expediente na Casa Rosada à tarde), está ficando apenas com o papel de representação, enquanto as decisões são tomadas mesmo pelo ex-presidente, no seu bunker justicialista. Além de ser uma anomalia, é mais um atraso no avanço das mulheres. Tenho defendido que certas vitórias da mulher são mais eficientes em nos atrasar que as derrotas. É a síndrome Rosinha: parece avanço e é retrocesso. É uma pena ver Cristina Kirchner, que teve uma carreira política antes de chegar à Presidência, perder a chance.

A inflação real na Argentina é desconhecida, e o imposto criado sobre a exportação de alimentos tem o objetivo duplo de combater a inflação, aumentando a oferta interna, e aumentar a arrecadação. Mas o resultado tem sido o boicote dos produtores, pois a tributação chegou a níveis insuportáveis. A queda do ministro da Economia não trouxe nenhum ânimo de que algo vá mudar. O sucessor é excessivamente ligado a Nestor Kirchner para se esperar dele qualquer política antiinflacionária eficiente que passe por aperto monetário e corte de gastos. Com tentativa de controle de preços, medidas artificiais, como proibição ou confisco da exportação, tudo o que se vai conseguir é mais inflação. Com medidas como manipulação do índice, tudo o que se consegue é alimentar a expectativa de inflação. Para um país que já viveu uma hiperinflação, é um espanto que se repitam esses erros.

O governo argentino está intervindo até em índices estaduais de inflação, determinando que não sejam divulgados. Debates sobre a crise de energia são claramente vetados. "O organizador do evento recebe um telefonema dizendo que a Presidência não gostaria que fosse realizado", conta um funcionário do governo brasileiro que tem acompanhado com apreensão o que se passa lá.

A Argentina está vivendo uma "crise incompreensível", na opinião do comentarista Jorge Oviedo, do jornal "La Nacion", porque tinha tudo para ganhar com a conjuntura criada pela crise de alimentos, por ser grande produtor, mas está ameaçando prender empresários. O governo vinha ameaçando os produtores com a Lei de Abastecimento, que os obriga a vender os produtos pelo preço estabelecido sob o risco de encampação estatal da empresa para vender a produção. "A Argentina deveria estar entre os países que se beneficiam com a alta de preços dos alimentos no mundo e, pelo contrário, vive uma crise. O que deveria ser um sonho para o país é um pesadelo, um castigo", disse o comentarista.