Título: Nas mãos de Dirceu
Autor: Noblat, Ricardo
Fonte: O Globo, 12/05/2008, O Globo, p. 2

"Dossiê? Dossiê? Dossiê é um nome bonito. Mas o povo não sabe o que é dossiê".(Lula, em conversa reservada com um amigo)

Depende de José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil, a sorte da candidatura de Dilma Rousseff à sucessão de Lula. Se ele autorizar José Aparecido Nunes Ferreira, chefe da Secretaria de Controle Interno do ministério, a contar o que sabe sobre o dossiê contra Fernando Henrique Cardoso, Dilma será acusada de ter mentido em depoimento no Senado.

Mentir é algo banal na política e fora dela. Mas se um político é flagrado mentindo diante de senadores e em sessão transmitida ao vivo pela televisão, a situação dele pode, sim, se complicar. Richard Nixon não renunciou à presidência dos Estados Unidos porque mandou espionar a sede do Partido Democrata em Washington ¿ mas porque mentiu ao país. Luiz Estevão de Oliveira não perdeu o mandato de senador porque se envolveu com o desvio de dinheiro para a construção do Fórum da Justiça do Trabalho em São Paulo ¿ mas porque mentiu a seus pares. Dilma repetiu no Senado que jamais existiu dossiê.

Foi Dirceu que nomeou José Aparecido para o cargo que ele ocupa desde o início de 2003. Para Aparecido, é Deus no céu e Dirceu na terra. Quando Dirceu era ministro, Aparecido despachava com ele pelo menos uma vez por semana. Depois que Dilma substituiu Dirceu, Aparecido passou a despachar com Erenice Guerra, secretária-executiva do ministério. Sente-se humilhado desde então. Aprendeu a detestar Erenice e a própria Dilma. ¿Elas me tratam como se eu fosse lixo¿, confidenciou certo dia ao amigo de longa data André Eduardo da Silva Fernandes, atual assessor do senador Álvaro Dias (PSDB-PR).

No último dia 20 de fevereiro, às 11h47, Aparecido aproveitou uma troca banal de e-mails com André para anexar em um deles dois arquivos. Um dos arquivos ganharia fama mais tarde por listar despesas sigilosas do governo Fernando Henrique Cardoso. O Congresso estava às vésperas de instalar uma CPI para investigar gastos com cartão corporativo feitos durante o governo Lula. Só no ano passado os gastos somaram R$ 78 milhões. Do total, R$ 58 milhões foram sacados em dinheiro vivo. Havia a suspeita de que parte desse dinheiro teria ido parar no bolso de alguns dos 11.500 portadores de cartões.

Por que Aparecido, ligado ao PT desde 1990, vazou o dossiê para André, seu ex-colega no Tribunal de Contas da União (TCU)? Talvez por mágoa dos seus superiores. Talvez para alertar a oposição que o governo tinha munição contra ela e que não se acanharia em usá-la. Nada demais. Afinal, no mesmo dia em que Aparecido despachou o dossiê para André, Dilma, em São Paulo, jantou com cerca de 30 empresários e revelou que estava em curso uma coleta de informações para incriminar o governo Fernando Henrique na farra dos cartões.

Amanhã, a CPI do Cartão decidirá se convoca Aparecido e André para deporem. O governo conta com larga maioria de votos na CPI. É inimaginável que só convoque André. Passaria recibo de que teme o que Aparecido possa revelar. É possível que não convoque nenhum dos dois. Usaria a desculpa de que a Polícia Federal ainda apura o caso. Se à polícia ou à CPI Aparecido repetir o que mais de uma vez confidenciou a André por telefone e, em particular, a alguns jornalistas, Erenice perderá seu emprego. E Dilma, no mínimo, parte das chances de vir a ser candidata do PT e de partidos aliados à vaga de Lula.

E o que disse Aparecido a André e a alguns jornalistas? Ora, o que só os mais puros de coração ainda se recusam a acreditar. Que Dilma instruiu Erenice a montar o dossiê. Que Erenice reuniu meia dúzia de funcionários da Casa Civil e encarregou-os da tarefa. E que informações extraídas do dossiê alimentaram no Congresso acertos entre líderes do governo e da oposição para que a CPI do Cartão não desse em nada. Até aqui não deu mesmo em nada. Só dará em alguma coisa se Dirceu quiser. Parece improvável que ele queira. Quanto a Aparecido, o governo acena com sua volta sem punição ao TCU.