Título: Moradora de rua, grávida, é morta queimada
Autor: Motta, Júlia; Alencar, Emanuel
Fonte: O Globo, 12/05/2008, Rio, p. 11

Crime na Praça da Bandeira teria sido motivado por vingança e deixou outra vítima em estado grave; acusado é preso

A moradora de rua Flávia Souza, de 15 anos, morreu ontem, por volta das 5h30m, depois de ter sido queimada enquanto dormia debaixo do Viaduto dos Marinheiros, na Avenida Francisco Bicalho, na Praça da Bandeira. Segundo o marido, Leonel Rosa de Souza, de 17, a adolescente estava grávida de pouco mais de um mês. Já Wellington Alves, de 16, também morador de rua, foi socorrido no local e encaminhado para o Hospital Souza Aguiar, com 100% do corpo atingido por queimaduras de segundo e terceiro graus. Até o início da noite ontem, o estado de saúde dele era considerado gravíssimo.

Outros quatro moradores de rua dormiam no local quando Flávia e Wellington foram queimados, mas conseguiram fugir. O morador de rua Eduardo Rodrigues de Souza, de 15, era um deles. Ele contou que, por volta das 5h, acordou sentindo muito calor:

¿ Quando abri os olhos vi que o sofá estava pegando fogo. Comecei a acordar todos que dormiam. A Flávia não conseguiu sair. Ela estava desesperada, mas ficou longe da porta. Já o Wellington saiu com o corpo em chamas ¿ contou Eduardo.

Testemunhas reconhecem acusado do crime

A namorada de Eduardo, Rafaela Beatriz da Silva, de 14 anos, acredita que o incêndio foi provocado por vingança de um outro morador de rua, Paulo Roberto Oliveira Ribeiro, de 19, o Dupira. Ele teria se desentendido com Eduardo e o jurado de morte.

¿ O Dupira andava roubando por aqui. O Eduardo brigou com ele e ele falou que iria queimá-lo ¿ disse Rafaela.

O caso foi registrado na 20ªDP (Vila Isabel), onde Paulo Roberto foi preso em flagrante. Ele estava com uma bolsa térmica com espuma e palitos de fósforo, objetos que, segundo o delegado-adjunto da distrital, Sandro Caldeira, foram determinantes para indiciá-lo por homicídio duplamente qualificado e tentativa de homicídio. Paulo Roberto dormiu na carceragem da 20ª DP e será encaminhado na manhã de hoje para a Polinter.

¿ Duas testemunhas que dormiam debaixo do viaduto o reconheceram a poucos metros do local do crime. Além disso, havia espuma grudada no corpo de Wellington ¿ contou o delegado.

Durante toda a tarde de ontem, sete testemunhas prestaram depoimentos. No início da noite, todos foram levados para abrigos da prefeitura. Paulo Roberto negou participação no crime e disse ter envolvimento com o tráfico de drogas da Mangueira. No entanto, os policiais nada constataram em sua ficha criminal.

De acordo com Caldeira, a destruição do local do crime foi tão grande que não foi possível encontrar pistas do material usado no incêndio.

A família de Wellington ficou sabendo do acidente pela televisão. Segundo o tio do jovem, que foi à 20ª DP e não quis se identificar, Wellington morava num abrigo na Praça Bandeira depois ter ficado mais de um ano em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos, em Resende.

Já Flávia trabalhava no Instituto de Previdência do Município do Rio de Janeiro (Prev-Rio), de acordo com seu marido, Leonel. O jovem contou que os dois iam sair da rua, pois a mãe de Flávia propôs pagar seis meses de aluguel para o casal. Como condição, o rapaz deveria arrumar um emprego. Na noite de sábado, Leonel não dormiu com Flávia, pois foi para o seu primeiro dia de trabalho numa gráfica. Ele entrou às 21h e saiu às 6h. ¿ Ela me pediu para não ir trabalhar ontem (no sábado), mas eu disse que era meu primeiro dia ¿ emocionou-se Leonel ¿ A gente ia começar a construir nossa família.

Autoridades admitem que há falhas com população de rua

O secretário municipal de Assistência Social, Marcelo Garcia, chamou o crime de ¿barbárie que deve ser investigada pela polícia¿. Ele preferiu não fazer mais comentários e disse que só se pronunciaria quando fosse informado oficialmente pela polícia. Já a subsecretária de Estado de Assistência Social, Nelma de Azeredo, reconheceu que a estrutura montada para ajudar a população de rua não vem conseguindo dar conta do problema.

¿ A Constituição não nos permite remover pessoas à força, e os abrigos não têm sido capazes de seduzir como deveriam. Muitas pessoas preferem continuar nas ruas. Precisamos ampliar e melhorar essa rede de proteção ¿ disse.