Título: (Des) Controle
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 13/05/2008, O País, p. 4

Foi o sociólogo Chico Oliveira, um dos fundadores do PT que rompeu com o partido ainda no começo do primeiro mandato do governo Lula, quem chamou a atenção para a irrelevância da política nos dias atuais, para ele um fenômeno irreversível. A supremacia da economia e dos interesses individuais em detrimento do coletivo seria uma característica do atual estágio do capitalismo, e o governo Lula estaria se utilizando, por um lado, dos programas assistencialistas, e de outro da cooptação dos "movimentos sociais", para praticar o que considero talvez o maior mal que seu governo está fazendo ao país, já ressaltado aqui na coluna: a esterilização da política.

A partir do controle dos partidos através da distribuição de cargos e de métodos mais radicais como o mensalão, o governo Lula neutralizou a ação congressual, montando uma enorme aliança política com partidos completamente distintos programaticamente, mas com um ponto em comum: nenhum deles dá mais valor ao programa do que aos benefícios que possa obter apoiando o governo da ocasião.

Ao mesmo tempo, o governo tratou de controlar os chamados "movimentos sociais" com verbas generosas e espaços de atuação política quase sempre neutros, popularmente conhecidos como "oposição a favor".

A política sindical é o melhor exemplo dessa neutralização dos eventuais adversários. A Força Sindical, de Paulo Pereira, deixou de disputar poder com a CUT e juntas ampliaram o espaço de atuação sindical. A mais recente manobra nesse sentido foi incluir na distribuição da verba do imposto sindical obrigatório as centrais sindicais.

Por outro lado, já está se transformando em pensamento único a percepção de que o presidente Lula é um espertíssimo político que não é páreo para uma oposição desastrada e abúlica. Esse endeusamento da "esperteza" política é outra característica dos tempos atuais, e existe a certeza nos meios governistas de que o "efeito teflon" que faz com que nenhuma crítica "cole" no presidente se deve a essa sua capacidade de se comunicar com a massa do eleitorado, que o entenderia mais do que a qualquer outro.

O próprio presidente teria comentado que não adianta a oposição falar em "dossiê" porque o povo não sabe o que significa. A suposta derrota dos formadores de opinião na reeleição do presidente Lula seria um sintoma de que o povo estaria do seu lado contra a "elite". Há indicações, no entanto, de que esse fenômeno tem razões muito mais palpáveis e prosaicas, e nem é tão novo assim.

O presidente Lula estaria apenas repetindo um comportamento antigo dos líderes políticos, da esquerda à direita, que se aproveitam das necessidades prementes da maioria da população para tirar vantagem eleitoral delas.

Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a "opinião popular", que reúne a grande maioria do eleitorado, "vive no mundo da necessidade" e votará "muito racionalmente" em quem julga capaz de ajudá-la.

Enquanto isso a "opinião pública", constituída pelos cidadãos organizados, se torna minoritária. Para o historiador, a consolidação de nossa democracia só virá "quando a opinião pública se transformar em opinião nacional".

O sociólogo Alberto Carlos Almeida veio acrescentar mais lenha a essa fogueira com uma nova pesquisa no livro "A cabeça do eleitor", onde analisa 150 eleições de vários níveis para chegar a uma conclusão parecida com a de Murilo de Carvalho: a lógica do eleitor brasileiro é votar para manter o governo que considera que melhorou sua vida, ou para derrotá-lo, se acha que sua vida piorou.

É a versão cabocla da máxima "é a economia, estúpido", do marqueteiro americano James Carville. Questões morais subjetivas, ou até mesmo casos de corrupção, só serviriam para derrotar governos que já estavam derrotados pelos problemas da economia.

O presidente Lula seria, nesse sentido, um "neocoronel" com tecnologia moderna, pois se é verdade que está promovendo uma distribuição de renda através de programas assistencialistas acompanhados por uma inflação baixa e o aumento do salário mínimo, seu governo está fazendo muito pouco para garantir que essas mudanças sejam perenes, ancoradas em alterações estruturantes da sociedade.

E, sobretudo, toda sua maneira de fazer política vai de encontro à idéia de transformar a "opinião popular" em "opinião pública", emancipando o povo. Ao contrário, como definiu Chico Oliveira, os projetos do governo se transformam em instrumentos de controle, restaurando uma espécie de clientelismo que dispensa a ação política. "É pelas suas carências que você é classificado perante o Estado", definiu em entrevista Oliveira.

Todo esse contexto explica por que, mais uma vez, o governo parece que conseguirá se safar de outro escândalo político, o do tal "dossiê" sobre os gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O grave é que essa história de dossiê só tem importância pelo jogo bruto da política que ela revela, uma questão tão subjetiva que não passa no crivo da "opinião popular".

Mais uma vez setores do governo se sentem autorizados a promover manobras políticas rasteiras contra seus adversários e tudo indica que ficarão impunes.

No mesmo espírito do dossiê sobre o governo anterior, que foi montado para evitar as investigações da CPI dos Cartões Corporativos sobre os gastos do governo Lula, para se defender os governistas apontam o dedo inquisidor para os processos que tucanos de Goiás estão respondendo, por abuso do poder econômico.

Ou ameaçam levar para dentro do Congresso as investigações que se desenrolam na Suíça sobre corrupção em obras públicas em São Paulo em governos do PSDB. Como se uma mão lavasse a outra. Por esse critério, o país vai à breca rapidamente.