Título: Crise à vista
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 17/05/2008, O País, p. 4

Tudo indica que a sorte do ex-secretário de Controle Interno da Casa Civil José Aparecido Nunes Pires, responsável pelo vazamento do dossiê sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não será a mesma dos delúbios e waldomiros da vida. Indiciado ontem pela Polícia Federal, depois de um depoimento de três horas, ele comparecerá à CPI do Cartão Corporativo na terça-feira sem a proteção do habeas corpus preventivo que tentou no Supremo Tribunal Federal, com a intenção de, como seus antecessores do mensalão, se recusar a falar, ou até se sentir autorizado a mentir, sem que essa atitude gerasse represálias por parte dos senadores.

A CPI receberá antes os depoimentos na Polícia Federal dele e de André Fernandes, o assessor do senador Álvaro Dias para quem enviou o dossiê, e assim saberá exatamente o que disseram. E, se um dos dois mudar de versão, ou se se recusar a confirmar o que já dissera à polícia, poderá sair preso do depoimento no Senado.

Além do mais, pode haver uma acareação entre os dois, o que limita muito o campo de manobra de José Aparecido, que, ao que tudo indica, viu ir por terra o acordo que estava costurando com o governo para não ser responsabilizado pelo crime de divulgar dados sigilosos da Presidência da República.

O delegado Sérgio Menezes, responsável pelo inquérito que investiga o vazamento do dossiê, está tendo um comportamento "republicano", como gosta de caracterizar o trabalho da Polícia Federal o ministro da Justiça, Tarso Genro, repetindo seu antecessor, o advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos.

O comportamento menos republicano, no caso, foi do próprio ministro, que primeiro defendeu a tese esdrúxula de que elaborar um dossiê com dados sigilosos não caracterizaria crime e, ao contrário, seria até mesmo obrigação de qualquer governo.

Mais adiante, tentou fazer como o seu antecessor, que criou a tese do caixa dois para explicar o mensalão e tirou o governo de uma enrascada. Só que o ministro Tarso Genro não é tão competente quanto Thomaz Bastos nessa tarefa, e criou a tese de que, se o vazamento foi "por descuido", sem intenção, a falta seria apenas administrativa, sem caracterizar crime.

A tese foi assumida por José Aparecido, mas não foi aceita pela Polícia Federal republicana, que indiciou o "descuidado" funcionário. Nada menos que sete computadores foram periciados pela Polícia Federal, que já traçou todo o roteiro do dossiê, desde a sua encomenda até a chegada ao computador do gabinete do senador Álvaro Dias.

O governo passeou por várias teorias, que iam sendo substituídas à medida que a anterior caía em desuso, por inverossímil, a ponto de a ministra Dilma Rousseff, em abril, ter afirmado que o vazamento das informações era crime, e suspeitar até mesmo que os computadores do Palácio do Planalto houvessem sido invadidos por um "hacker", provavelmente tucano.

Um mês depois, diante das evidências de que fora um "petista histórico" o vazador, a ministra Dilma disse, na Comissão de Infra-Estrutura do Senado, que recebera a informação do Gabinete de Segurança Institucional de que os documentos anteriores a 2002, data da vigência do decreto que determina a classificação de documentos oficiais, não poderiam ser considerados sigilosos.

Era a deixa para inocentar José Aparecido e livrá-lo de eventuais punições. Mas tanto a tese do "vazamento por descuido" quanto a da data em que os documentos passaram a ser sigilosos não resistem à lógica, quanto mais a um bom advogado.

A legislação não interpreta a intenção da quebra do sigilo, nem define data para que documentos oficiais se tornem sigilosos, ou secretos, ou ultra-secretos.

Ela trata, de maneira geral, dos documentos oficiais de posse do governo federal, e não importa se eles datam de antes ou depois da vigência do decreto - que trata de critérios para a classificação de documentos, e determina quem tem capacitação funcional para estabelecê-los.

Por exemplo, diz que "produção, manuseio, consulta, transmissão, manutenção e guarda de dados ou informações sigilosos observarão medidas especiais de segurança".

Apenas funcionários "com certificado concedido por autoridade competente, que habilita determinada pessoa a ter acesso a dados ou informações em diferentes graus de sigilo", poderiam acessar os dados.

As informações de posse da Polícia Federal indicam que a coleta de dados para a montagem do dossiê feriu as normas do decreto 4.553, de dezembro de 2002, que dispõe sobre a "salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da administração pública".

Esse decreto diz que "todo aquele que tiver conhecimento (...) de assuntos sigilosos fica sujeito às sanções administrativas, civis e penais decorrentes da eventual divulgação dos mesmos". E mais, em seu artigo 65, diz que "toda e qualquer pessoa que tome conhecimento de documento sigiloso, nos termos deste decreto, fica, automaticamente, responsável pela preservação do seu sigilo".

Provavelmente por todas essas questões, e especialmente para proteger seu assessor, o senador Álvaro Dias se recuse a assumir a condição de "fonte" da revista "Veja", embora ele, como senador, e a revista, com base na liberdade de informação, tenham argumentos, esses sim, republicanos, para explicar uma eventual quebra do sigilo.

O que não tem explicação é o governo montar uma força-tarefa sem obedecer a nenhuma norma legal, para fazer uso político de documentos sob sua guarda. Indiciado com base no Código Penal, José Aparecido, que havia ameaçado não aceitar assumir a culpa sozinho, pode pegar até seis anos de cadeia.