Título: Para Gabeira, internet realiza sonho anarquista
Autor: Tabak, Flávio; Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 17/05/2008, O País, p. 17

Protestos que tomaram as ruas no ano emblemático de 68 ganham novos formatos entre jovens de hoje

O olhar nostálgico sobre 1968, desta vez, ficou fora do debate. Pelo menos para quatro pessoas que participaram dos movimentos da época. Reunidas para discutir o legado de um dos anos mais emblemáticos do século XX, elas preferiram buscar as heranças de 68 nos fenômenos sociais da atualidade, desde o funk nos morros cariocas às novas formas de relação fundadas pela internet.

Debate promovido ontem, na série Encontros O GLOBO, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, mostrou que 68 e seu legado histórico são tão atuais quanto foram a minissaia e a pílula anticoncepcional à época. O assunto foi discutido pelo deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), a pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda e os jornalistas Zuenir Ventura e Ernesto Soto, autor com Regina Zappa do livro"1968: Eles só queriam mudar o mundo". A mediação foi da jornalista Helena Celestino, editora-executiva do GLOBO.

Em rave, Zuenir constata transformações

Zuenir Ventura, que acaba de lançar o livro "1968 - O que fizemos de nós", continuação de "1968: o ano que não terminou", contou que, em reportagem para a publicação, encontrou vestígios de 68 numa festa rave. Zuenir pensou que esbarraria em orgias como no festival de Woodstock. Para sua surpresa, viu uma "ordem inimaginável", apenas com as cores psicodélicas lembrando a época em que os Beatles misturavam guitarras com instrumentos indianos.

- Dois entrevistados do livro me ajudaram a entender o que era aquilo. O psicanalista João Batista Ferreira me disse que havia um 68 em 2008. Só compreendi melhor quando Caetano Veloso resumiu: "Para ser parecido (o movimento de 68), tem que ser completamente diferente" - disse.

Um desses fragmentos está visível e atualizado nas favelas e áreas pobres de grandes cidades, alvo de estudo de Heloísa Buarque de Hollanda.

- A origem de 68 está nos anos 50, com as guerras coloniais de independência, como a que ocorreu na Argélia. A Europa passa a ver que os "nativos" tinham voz, foi a descoberta do outro. Isso abalou o imaginário político da época, assim como a luta por direitos civis nos Estados Unidos. Hoje a periferia está com marra, o movimento grita. O rap é um uma canção de protesto como foi nos anos 60 - disse.

Em vez de subirem os morros com o Centro Popular de Cultura (CPC) para mostrar aos pobres o que eles deveriam reivindicar, os intelectuais agora assistem a um cenário completamente diferente, com troca de papéis.

- Hoje é a periferia que fala com o governo; eles são poliglotas e estão tentando resolver os seus problemas. Essa garotada é como a minha geração, mas não é de classe média. Se alguém for a Vigário Geral dizer o que eles devem pensar, vai receber gargalhadas como resposta - completa a pesquisadora.

"Globalização também tem origem na época", diz Soto

Gabeira vai além, embora tenha confessado ao público uma promessa particular de não voltar ao assunto. O deputado analisa que as heranças de 40 anos atrás são superiores a qualquer expectativa pensada na época. Para ele, a internet faz a ordem do dia:

- Nos anos 60, havia várias sementes precárias de anarquismo. A internet realizou um sonho anarquista de forma inesperada. Ela permite uma autodefinição enorme. O período atual é tão mais dinâmico que nem chegamos a entendê-lo direito.

Sobre a constatação comum de que a geração de hoje não enfrenta questões políticas, Gabeira diz que as utopias se enfraqueceram, sim, mas o mundo caminhou para a democracia, revelando um cenário melhor do que "nós poderíamos construir".

Outra raiz de quatro décadas atrás, que se apresenta amadurecida hoje em dia, é a globalização.

- Foi a época das primeiras fusões de empresas, com deslocamento de unidades para países periféricos. As redes de televisão americanas também iniciaram as primeiras transmissões via satélite, foi o início do processo de globalização - analisa Ernesto Soto.