Título: MPs inibem o crescimento
Autor: Nóbrega, Maílson da
Fonte: O Globo, 16/05/2008, O Globo, p. 7

O uso excessivo das medidas provisórias (MPs), pior no governo Lula, torna o governo imprevisível, aumenta custos de transação e reduz o potencial de crescimento da economia. As MPs são de outra época. O Congresso deveria extingui-las.

As MPs são a antítese do moderno sistema capitalista, cujo marco institucional é o fim do absolutismo inglês promovido pela Revolução Gloriosa (1688). O rei perdeu o poder de confiscar bens, demitir juízes e mudar as regras a seu talante.

Direitos de propriedade bem definidos e respeito aos contratos, assegurados por um Judiciário independente, foram os ingredientes básicos que fariam nascer o atual sistema capitalista. Os empreendedores passaram a contar com incentivos para assumir riscos, investir e inovar. As mudanças desaguaram na Revolução Industrial.

Em 1700, a Inglaterra tinha menos de um terço da população da França (6 milhões e 21 milhões de habitantes, respectivamente). O PIB inglês era a metade do francês. Em pouco mais de um século, o capitalismo transformou a Inglaterra em potência mundial e em poder naval incontrastável. O Império Britânico se estabeleceu.

Esse resumo realça o poder transformador do sistema capitalista, em cuja origem estão a ausência do arbítrio e a previsibilidade dos atos do governo. No Brasil, os decretos-leis (DLs) e agora as MPs constituem realidade oposta.

Pela Constituição de 1969 (art. 55), os DLs podiam ser baixados em casos "de urgência ou de interesse público relevante". Não podiam aumentar a despesa e estavam restritos a (1) segurança nacional; (2) finanças públicas, inclusive normas tributárias; e (3) criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.

A Constituição de 1988 (art. 62) extinguiu os DLs e instituiu as MPs, a serem emitidas em casos "de relevância e urgência". As MPs se transformaram em instrumento mais poderoso que os DLs. Podem quase tudo, até aumentar a despesa.

Os DLs usurpavam poderes do Legislativo e foram de certa forma a reação de regimes autoritários à baixa capacidade decisória do Congresso. As crises dos anos 1980 os tornaram instrumento para a adoção de medidas emergenciais.

As MPs foram inspiradas nas medidas provisórias da Itália. Ocorre que no regime parlamentarista italiano elas constituem mera antecipação, em casos urgentes, da capacidade de aprovar propostas legislativas, dada pela maioria estável. Não é o caso em regimes presidencialistas como o nosso.

O primeiro governo civil pós-regime militar valeu-se de DLs para criar os planos Cruzado (1986) e Bresser (1987). O Plano Verão (1989) recorreu às MPs. Depois, o Plano Collor (1990) e o Plano Real (1994) também usaram as MPs.

Ao longo desses anos, o amadurecimento institucional consolidou a estabilidade macroeconômica, reforçou a democracia e inibiu retrocessos e rupturas. O Brasil se tornou previsível. A idéia de que seríamos ingovernáveis sem MPS se baseia em situações superadas.

Na verdade, as MPs viraram instrumento de uso corriqueiro, sem justificativa plausível. Qual a urgência e a relevância do uso do instrumento para criar a TV Brasil?

O Brasil atingiu estágio institucional que lhe permite conviver com o processo legislativo normal das democracias presidencialistas. Medidas emergenciais podem ser apreciadas pelo Congresso em regime especial de tramitação. Foi o caso do pacote fiscal do governo Bush, destinado a evitar que a turbulência financeira gerasse um quadro recessivo dramático. O projeto foi aprovado em menos de duas semanas.

As MPs são convenientes para o Executivo, mas constituem fonte de imprevisibilidade prejudicial à economia. Em vez de buscar evitar o entulho das MPs, os líderes deveriam extingui-las. Simultaneamente, mecanismos institucionais deveriam ser desenhados contra a morosidade do processo legislativo e para as emergências.

Desse modo, o Congresso mudaria a lei e os seus regimentos, para melhorar o processo decisório e assegurar que o fim das MPs não seria causa de ingovernabilidade.

MAILSON DA NÓBREGA é ex-ministro da Fazenda.