Título: Zélia Gattai, um caso de amor com a literatura
Autor:
Fonte: O Globo, 18/05/2008, Rio, p. 22

Com obra memorialista, marcada pela união com Jorge Amado, escritora e acadêmica morre aos 91 anos

A paulista Zélia Gattai demorou para sair das margens da arte literária e da enorme sombra de seu marido, Jorge Amado, mas o fez com graça. Seu primeiro livro, ¿Anarquistas, graças a Deus¿, foi publicado em 1979, quando a autora já contava 63 anos. Era notória conversadora e contadora de histórias, fato que talvez explique a inflexão memorialista de sua obra. A paixão pelo passado já era visível em ¿Anarquistas¿, livro em que narra a chegada dos Gattai ao Brasil. O livro seguinte, contudo, já tratava de Amado: ¿Um chapéu para viagem¿, de 1982, fala das histórias da família do baiano, contadas primordialmente por sua mãe, dona Lalu, assim como do começo do romance de Zélia com Jorge.

Depois desse livro se seguiriam outros tendo sua vida como tema: ¿Senhora dona do baile¿ (1984), ¿Jardim de inverno¿ (1988), ¿Chão de meninos¿ (1992), ¿A casa do Rio Vermelho¿ (1999), ¿Cittá di Roma¿ (2000), ¿Códigos de família¿ (2001), finalizado dias antes da morte de Jorge Amado, ¿Um baiano romântico¿ (2002), ¿Memorial do amor¿ (2004) e ¿Vacina de sapo¿ (2005).

Zélia se aventurou fora do território das memórias em apenas um romance, ¿Crônica de uma namorada¿ (1995), e três livros infantis: ¿Pipistrelo das mil cores¿ (1989), ¿Segredo da Rua 18¿ (1991) e ¿Jonas e a sereia¿ (2001). Ainda assim, ¿Crônica¿ e ¿Segredo da Rua 18¿ são marcados por referências biográficas, o primeiro ao início de seu namoro com Amado e o segundo aos mesmos anarquistas de seu primeiro livro.

Não faltaram episódios interessantes na vida de Zélia para abastecer seus volumes memorialistas. Em 1936, casou-se com o líder comunista Aldo Veiga, com quem teve o primeiro filho, João. Começou a circular por rodas de intelectuais como Lasar Segall, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Rubem Braga e Vinícius de Moraes. Dois anos depois teve o pai preso pela polícia de Getúlio Vargas e se envolveu com mais força na política. Em 1945 pôs fim ao casamento conturbado e conheceu Amado. Um período breve de trabalho pela causa política comum deu início à união de 56 anos, formalizada no papel apenas em 1978. Amado, que vinha de um casamento de 15 anos marcado pelos sintomas iniciais da esquizofrenia da primeira mulher, confessou que, ao ver Zélia, ¿arriou a bandeira e pediu paz¿.

Em 1946, Jorge foi eleito para a Assembléia Constituinte; em 1947, nasceu o primeiro filho do casal, João Jorge; e, já no ano seguinte, a família partiu para um exílio que duraria cinco anos. A peregrinação pelo mundo, o contato com intelectuais como Neruda, Sartre, Simone de Beauvoir e mesmo o nascimento de uma filha, Paloma, acabaram registrados na prosa plana de Zélia em ¿Senhora¿ e ¿Jardim¿. Em 1952, o casal voltou ao Brasil e, oito anos depois, à Bahia, instalando-se na casa no bairro do Rio Vermelho, centro nervoso da vida intelectual baiana, povoada de lembranças de amigos do casal, como Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti e Picasso.

As várias anedotas da vida em família em Rio Vermelho, que durou de 1960 até a morte de Amado, em 2001, também foram eternizadas em livro, ¿A casa do Rio Vermelho¿ (1999). Zélia tentava há anos transformar a residência no Memorial Jorge Amado e reclamava da falta de apoio ao projeto:

¿ Nunca pensei que fosse tão difícil. É um desprestígio fazerem isso com Jorge.

Zélia mantinha amizade com diversos políticos. Entre eles, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL). Quando, em 2001, ACM, então deputado federal, foi submetido a um processo de cassação de mandato, ela saiu em sua defesa: ¿querem acabar com a Bahia¿, afirmou.

Em seus textos, Zélia procurava escrever com leveza e sem maneirismos, seguindo conselho do próprio Amado.

¿ Ele disse: ¿Escreva o livro da sua infância. Você tem muito a contar. Agora, dou-lhe um conselho: não tente fazer literatura. Você não é uma literata. Você é uma pessoa simples. Escreva com teu coração, com teu sentimento. Escreva a história de São Paulo, da tua infância¿ E você vê, disse-me ele, eu também escrevo com o coração ¿ afirmou em entrevista ao GLOBO em 2001.

Após a morte de Jorge Amado, eleição para a ABL

Zélia transformou-se numa bem-sucedida vendedora de livros, com pouco mais de meio milhão de exemplares de sua obra vendidos no Brasil e traduções para o francês, alemão, espanhol, italiano e russo.

Em 2001, Zélia foi eleita para a cadeira que fora ocupada por Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras. A eleição ganhou tons azedos quando o jornalista e escritor Joel Silveira anunciou sua candidatura para se opor à ¿arrogância¿ de Zélia, que dizia merecer a vaga por seus méritos literários e não por ser mulher de Amado. A escritora acabou recebendo 32 dos 37 votos da ABL. Em seu discurso de posse, em 2002, falou do primeiro encontro com Amado:

¿ Jorge sempre me dizia: ¿Ao pousar pela primeira vez os olhos em você, meu coração disparou¿.

Depois da morte de Amado, escreveu mais três livros, todos tendo o baiano como tema. O mais recente, ¿A vacina do sapo¿ (2005), conta os três últimos anos da vida do casal, quando Jorge já enfrentava problemas de saúde. Após a morte do autor, Zélia mantinha em seu gabinete de trabalho uma fotografia ampliada de Amado.

¿ Olho para aquela foto, e parece que ele pisca pra mim ¿ disse ao GLOBO, em agosto de 2006. ¿ Não tenho motivos para tristeza. Sinto como se ele estivesse vivo, perto de mim.

Nos últimos anos, com a saúde fragilizada, Zélia passou por uma série de internações hospitalares. A primeira foi em dezembro de 2005 quando a escritora foi hospitalizada durante dois dias em Salvador com problemas pulmonares. Em 2006, uma queda a impediu de comparecer à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que teve Amado como autor homenageado.

Sete anos após perder o marido, a escritora morreu na tarde de ontem, aos 91 anos, em Salvador. Zélia estava internada no Hospital da Bahia desde o dia 17 de abril, quando passou por uma cirurgia de desobstrução do intestino. Seu quadro de saúde já era de extrema gravidade desde a madrugada de ontem, quando os médicos constataram que ela apresentava choque circulatório irreversível. Seus filhos, João Jorge e Paloma Amado, pediram aos médicos que fossem mantidas as medidas de conforto, como respiração com a ajuda de aparelhos.

¿ Ainda antes de ser submetida à cirurgia, ela chegou a dizer que estava com medo, o medo da morte. Todos temos medo da morte e ela exprimiu este medo ¿ disse João Jorge, pouco antes do falecimento de Zélia.

A família decidiu cremar o corpo da escritora e espalhar as cinzas na casa do Rio Vermelho, como foi feito com Amado.