Título: Dores da mudança
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 20/05/2008, O País, p. 4

Quando anunciou a líder ambientalista Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, em 2003, o presidente Lula tratou a escolha como uma mensagem ao mundo de que, a partir dali, a Amazônia passaria a ser tratada de maneira diferente. Lula saíra de uma campanha presidencial vitoriosa onde, durante o lançamento do programa Fome Zero, dissera com todas as letras: "O que não dá é que temos que exportar vendo as pessoas morrendo aqui dentro. Nosso povo tomou café da manhã, almoçou e jantou? Então, vamos exportar o que sobrou". Para o Lula daquele tempo, o Brasil deveria se preocupar primeiro em matar a fome dos mais pobres, para só então exportar "as sobras". Era o tempo em que ainda prevalecia no novo governo a tese de que a agricultura familiar deveria ter primazia sobre o agronegócio.

O Fome Zero desapareceu para dar lugar ao Bolsa Família; as exportações agrícolas são a base principal de nossa balança comercial, e Lula vê-se hoje sendo acusado até por "companheiros" como Chávez e Fidel Castro de estar priorizando os biocombustíveis em detrimento da produção de alimentos, o que provocaria a alta do preço internacional da comida.

Com o viés desenvolvimentista acelerado pelo PAC, Lula fica nervoso com as exigências do Ibama para a concessão de licenças ambientais para a construção de hidrelétricas na Amazônia. Os sinais trocados pelo tempo fizeram com que a saída de Marina Silva do Ministério acendesse uma luz de alerta no mundo, a ponto de a soberania brasileira sobre a Amazônia voltar a ser colocada em discussão.

Alguns dos mais importantes órgãos de imprensa internacional, desde o inglês "The Independent" até o americano "The New York Times", de maneiras distintas, discutem a responsabilidade internacional sobre essa parte do nosso território.

Há anos circula pelo território livre da internet uma notícia alarmista sobre a Amazônia: um livro didático que seria usado nas escolas dos Estados Unidos mostraria um mapa do Brasil com a Amazônia destacada como território internacional, "área sob a responsabilidade dos Estados Unidos".

O mapa estaria na página 76 de um livro intitulado "Introdução à geografia", de David Norman. Com uma rápida busca no Google, ou no site da Amazon, a maior livraria virtual do planeta, pode-se encontrar dezenas de David Norman: cientistas, técnicos de futebol, artistas, escritores. Mas não há nenhum autor de livro didático, e nunca ninguém conseguiu colocar a mão num exemplar desses.

Essa mesma hipótese de internacionalização da Amazônia foi levantada há anos por um estudante, durante palestra em Nova York do senador Cristovam Buarque. O jovem americano queria que ele opinasse "como humanista, e não como brasileiro".

Cristovam admitiu que, em caso de risco de degradação ambiental, a Amazônia deveria, sim, ser internacionalizada. Mas acrescentou que, nessa mesma linha, tudo o que tem importância para a Humanidade, ou pode colocá-la em risco, também deveria ser internacionalizado: as reservas de petróleo, o capital financeiro, os arsenais atômicos, e sobretudo as crianças pobres de todo o mundo, "que precisam de mais cuidados que a Amazônia".

Quando era presidente da Câmara, o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB, enviou um protesto oficial ao então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, por causa de um livro de Pascal Boniface, seu assessor para assuntos estratégicos, chamado "A guerra do amanhã", onde, entre possíveis cenários de guerra do século XXI, ele imagina a invasão de uma coligação internacional na Amazônia.

O modelo seria ação da Otan contra a Sérvia em Kosovo. No livro, Boniface alega que, se o princípio da soberania nacional foi removido em Kosovo para salvar alguns milhares de pessoas, por que não seria removido se chegarmos à conclusão de que salvar a Amazônia é salvar a Humanidade?

O secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, preocupado com a situação da Amazônia brasileira, acha que uma questão essencial no Brasil de hoje é a reconciliação entre certos segmentos da sociedade civil e as Forças Armadas:

"A proteção militar eficiente para garantir a inviolabilidade das fronteiras e a segurança das populações brasileiras que nessas regiões habitam, assim como a enérgica recusa brasileira a que se utilizem na Colômbia métodos de combate às drogas e de erradicação de plantações que possam vir a afetar o ecossistema da Amazônia brasileira, devem ser prioridades do governo e da sociedade brasileiros", escreveu.

Pois o novo ministro do Meio Ambiente, o petista-verde Carlos Minc, repetiu duas posições anteriores: como Cristovam Buarque, ontem, ao ser questionado sobre a preocupação mundial com a Amazônia, disse que também considerava Paris e Nova York patrimônios da Humanidade, dando a entender que nem por isso devem ser internacionalizadas.

E, com a sugestão de fazer o Exército tomar conta das nossas reservas ecológicas, assume uma posição de repercussão imediata: garante a defesa de nossa soberania territorial e demonstra ao mundo que a disposição do governo de proteger a Amazônia é real.

A ambigüidade do Ministério do governo Lula, que tenta conciliar as tensões entre governadores da base como Blairo Maggi e Ivo Cassol e os ambientalistas, precisa agora de uma definição, e Carlos Minc parece querer dar uma sinalização ao mundo de que não transigirá com a agressão ao meio ambiente.

Sabemos que ele não combinou antes com Lula. Vamos ver agora se Lula comprou sua postura. Ou se Minc a confirmará na prática. Mas, se fosse para não mudar nada, por que Marina ficou sem espaço para permanecer no governo?