Título: Filme B
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 21/05/2008, O País, p. 4

Quem assistiu às quase oito horas da sessão de ontem da CPMI dos Cartões Corporativos teve uma boa idéia de como funcionam os bastidores da política em Brasília. Personagens aparentemente irrelevantes na cena política, como assessores legislativos, tornam-se centrais não como assessores, mas atores políticos de uma rede de intrigas que envolve encontros quase secretos em restaurantes, suspeitas de gravações de conversas, mensagens trocadas, documentos sigilosos enviados "por descuido" ou intencionalmente, cadeias hierárquicas quebradas por (in)fidelidades políticas, amizades traídas.

Os dois principais envolvidos, José Aparecido, da Casa Civil, ligado a José Dirceu, e André Fernandes, assessor do senador tucano Álvaro Dias, mas com passado petista, tinham motivos para ressentimentos. Aparecido, levado ao posto quando José Dirceu era chefe da Casa Civil, mal tinha contato com a atual ministra Dilma Rousseff, e, pelos rumores, sentia-se menosprezado. Poderia ter vazado o dossiê para prejudicar as perspectivas políticas de Dilma.

Já André Fernandes enviou seu currículo para Aparecido no início do governo Lula, em 2003, numa demonstração de que pleiteava uma nomeação. Segundo Aparecido, ele queria uma sub-secretaria no Ministério do Planejamento. Pela versão governista, traiu seu amigo e vazou o documento para se vingar do governo.

Um enredo, enfim, de filme de espionagem tipo B, com atores de quinta categoria. A tal ponto o clima de filme "noir" tomou conta da sessão, que o relator da CPMI, o petista Luiz Sérgio, deixou-se levar pela ânsia de descobrir mensagens cifradas na troca de e-mails entre os dois personagens principais da farsa, o "petista histórico" José Aparecido e o assessor "tucano" Antonio André Fernandes.

Por duas vezes caiu no ridículo no papel de "sherlock". Diante de uma mensagem de André para Aparecido que dizia "te ligo na quinta", sobre um convite para almoçar, Luiz Sérgio perguntou se a resposta não estava em código.

Mais adiante, ele pensou que havia, afinal, descoberto o código. E, com um ar muito sagaz, perguntou a José Aparecido o que significava a sigla "sds" com que invariavelmente André encerrava suas mensagens por e-mail. Diante da espantada resposta de que provavelmente significava "saudações", Luiz Sérgio pareceu frustrado, tirando sorrisos até mesmo do depoente.

As intrigas de bastidores tomaram conta da sessão, e a situação, aliás com acerto do ponto de vista político de sustentar a posição do governo de não permitir que a ministra Dilma Rousseff ou sua principal assessora, Erenice Guerra, fossem envolvidas na feitura e divulgação do dossiê, ateve-se a discutir a natureza da amizade entre Aparecido e André, algumas vezes chegando perto da grosseria.

O deputado pernambucano Silvio Costa, do PMN, assumiu o papel de defensor intransigente e truculento do governo, "um governista radical" como ele mesmo se classificou. A tal ponto governista que em determinado momento montou uma tese segundo a qual o vazamento do documento acontecera para prejudicar o presidente Lula, no que foi rechaçado veementemente pelo "petista histórico" José Aparecido, que sustentou a esdrúxula tese de que o dossiê saiu de sua máquina, mas ele não se lembra de tê-lo mandado.

Costa ainda tentou outra explicação, a de que Aparecido mandara o dossiê para provar ao PSDB que não havia dossiê. Foi novamente repudiado por Aparecido e chegou à caricata conclusão de que o ex-funcionário da Casa Civil estava com "dedo torto" naquele dia.

O que seria uma chantagem política fica transformado em um mero descuido, uma falha humana, nas suas próprias palavras. A explicação é tão ridícula que outro governista radical, o suplente de senador Wellington Salgado, mostrou-se desanimado para a tarefa de defendê-lo.

Tentou até uma outra escapatória, sugerindo que Aparecido teria mandado o dossiê de alguma forma enganado por seu amigo. Mas Aparecido manteve-se firme na defesa de que não tinha idéia de ter mandado o dossiê, embora reconhecendo que os laudos do Instituto Técnico eram conclusivos.

O assessor do senador Álvaro Dias também ajudou a criar um clima de pastelão com sua maneira simplória de avaliar sua atuação nos bastidores da política. E deixou dúvidas no ar ao ficar claro que só avisou a Álvaro Dias, seu chefe imediato, cerca de dez dias depois, alegando que estava de férias.

O próprio senador, confrontado com declaração sua à CBN de que pedira a André Fernandes para conseguir o dossiê, cuja existência estava sendo revelada em diversas notas em jornais e revistas, deu uma explicação inconvincente, ajudando a dar força à tese governista de que Aparecido na verdade havia sido enganado por André.

Apenas o senador Arthur Virgílio, líder do PSDB, e o deputado Carlos Sampaio, também do PSDB, foram ao cerne da questão: a existência do dossiê estava confirmada pelas características físicas do relatório enviado, por descuido ou não, de um gabinete da Casa Civil para o gabinete do vice-líder da oposição no Senado.

E quem deu as ordens para confeccioná-lo foi a vice-mInistra Erenice Guerra. André Fernandes, o assessor do senador Álvaro Dias, declarou que Aparecido, muito nervoso, garantiu a ele, em almoço com duas testemunhas, que a ordem para a confecção do que chamou de "banco de dados seletivo" partiu de Erenice Guerra.

E Aparecido confirmou isso indiretamente, sem pronunciar uma só vez os nomes Erenice ou Dilma, ao citar o secretário de administração da Casa Civil, Norberto Temóteo, como quem requisitara os funcionários para ajudar na montagem do dossiê, que chamou o tempo todo de "banco de dados". Como Norberto é subordinado diretamente a Erenice, fica clara a cadeia de comando. Mas, como disse José Agripino Maia, somente a Polícia Federal, se agir como instituição realmente republicana, poderá definir as responsabilidades.