Título: Vale do Javari agoniza com malária e hepatite
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 25/05/2008, O País, p. 10
SAÚDE INDÍGENA: Casos de malária superaram o número de habitantes da reserva em 2007, o que mostra reinfecção
Reserva no Amazonas onde vivem 3.700 índios têm índices de mortalidade infantil de países africanos miseráveis
ALDEIA SÃO SEBASTIÃO, VALE DO JAVARI (AM). A reserva indígena Vale do Javari, área do tamanho de Santa Catarina localizada no Oeste do Amazonas, agoniza com a malária, a hepatite e índices de mortalidade infantil só comparáveis aos do Afeganistão e de países miseráveis e conflagrados na África. A reserva abriga 3.700 índios, espalhados em 50 aldeias. Há um número desconhecido de tribos isoladas na região, onde o impacto das doenças é ignorado.
A dificuldade de acesso e de remoção de pacientes graves e a falta de estrutura para a atuação dos agentes de saúde não são os únicos problemas. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento indígena, não tem médico algum na região, só enfermeiros e auxiliares. Vale repetir: não há médico nos 8,5 milhões de hectares da terra indígena Vale do Javari.
A taxa de mortalidade infantil na reserva, no ano passado, foi de 123,07 óbitos de menores de 1 ano para cada mil bebês nascidos vivos, índice cinco vezes maior do que a média nacional entre não-índios (22,6, em 2006) e duas vezes e meia acima da média indígena (48,5). Apenas o Afeganistão e seis países africanos, entre eles Serra Leoa, Angola e Libéria, têm taxas maiores, entre os 194 países e territórios monitorados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Mas nenhum supera a aldeia de Massapê: 277,7.
"Antes, a gente morria de velho"
A malária, doença transmitida por mosquito, debilita toda a população. As crianças são as principais vítimas. Segundo a Funasa, os casos de malária superaram o número de habitantes da reserva em 2007, o que significa que pessoas foram infectadas mais de uma vez no ano. Já a hepatite B atingia 7,7% dos moradores, dos quais boa parte não recebe tratamento.
A Funasa lançou em abril uma operação com apoio das Forças Armadas, ao custo de R$3 milhões. Até junho, helicópteros levarão os agentes às tribos, onde barcos e soldados dão apoio logístico. Médicos foram recrutados em outras cidades. Entre 15 e 19 de maio, o GLOBO acompanhou a incursão em três aldeias dos marubos: Maronal, São Sebastião e Fonte Boa.
Em São Sebastião, 38% dos índios estavam com malária, incluindo o cacique Maiãpa, de 62 anos, cujo nome civil é Said Reis, e o agente indígena responsável pelo posto local da Funasa, Uaképa, ou Américo Miguel Doles.
- A malária já matou muita gente. Antes, se morria de velho ou de mordida de cobra - disse o cacique Maiãpa, que se tratava da segunda malária no ano.
Os marubos receberam a equipe com desconfiança. Anos atrás, dizem, agentes de saúde foram à região para coletar sangue, mas nunca retornaram. Em Maronal, foi preciso um dia de reunião com o diretor de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka, para convencê-los.
Seqüestro para garantir posto
Em São Sebastião, onde o material de construção do futuro posto de saúde ainda espera o início da obra, os ânimos se exaltaram. As sete garrafas de álcool de limpeza que sumiram da bagagem do dentista da equipe podem ter ajudado - o alcoolismo preocupa o governo, embora a dificuldade de acesso à região reduza o problema.
Dois dias antes, os índios de São Sebastião, cuja população é de 98 pessoas, já haviam cogitado seqüestrar o diretor da Funasa. Eles queriam um documento por escrito com a promessa de início da construção.
Como a maioria não fala português, a reunião teve um intérprete. Constrangido, ele traduziu para Guenka a frase do agente Uaképa, que já perdeu um filho com hepatite e tem uma neta de 6 anos com a doença:
- Se não começar a obra, ele está se preparando para amarrar autoridade mentirosa.
Guenka respondeu:
- Não é um papel que vai garantir nada. Não vim para mentir. Esta operação não foi fácil, tem que convencer gente muito mais forte do que eu no governo. Quase ninguém enxerga o Javari. É esquecido. Não vou assinar esse documento.
O diretor prometeu dar início à obra em dez dias. Ganhou - e usou - um cocar.
Em Maronal, o índio Pei ou Paulo Barbosa da Silva, de 29 anos, é portador de hepatite dos tipos B e D, o mais grave. Sua mulher Vo, de 26 anos, já teve hepatite A. A filha do casal, de 11 meses, contraiu malária pela primeira vez aos 4 e está novamente infectada. Pei, que é professor de ensino fundamental na aldeia, leu um manifesto em português para Guenka. O texto dizia que a área está em situação de calamidade pública e que a operação da Funasa corre o risco de virar "um show em cima dos nossos problemas de saúde", se não houver continuidade.
O repórter viajou de Cruzeiro do Sul (AC) às aldeias a convite da Funasa.