Título: Os já mortos
Autor: Mendes, Taís
Fonte: O Globo, 25/05/2008, Rio, p. 15
Dos 1.222 baleados atendidos nos hospitais este ano, 31% já chegaram sem vida.
Atransferência de criminosos mortos em combate com a polícia nas favelas do Rio para hospitais públicos, além de sobrecarregar as emergências, revela a falta de estrutura do estado. Com o argumento de que não há condições de segurança para manter os locais de crime, cada vez mais policiais levam para as unidade de saúde corpos dilacerados por tiros e granadas. O argumento que desfaz a cena de homicídios também serve para esconder possíveis execuções praticadas por policiais. O comando da Polícia Militar, no entanto, alega que cabe ao médico atestar o que está aos olhos de todos. Levantamento feito pelo GLOBO em dez emergências do Rio ¿ municipais, estaduais e federais ¿ revela que, dos 1.222 baleados atendidos nas unidades de saúde este ano, 31% já chegaram mortos, a maioria, garantem os médicos, levados por PMs. São 387 locais de crimes desfeitos, prejudicando as investigações policiais e a identificação de criminosos.
¿ Sem o cadáver, fica impossível concluir as circunstâncias do crime. O local do crime tem que ser preservado. Isso é respeitado no mundo inteiro ¿ afirma Mauro Ricart, perito criminal há 35 anos e ex-diretor do Instituto de Criminalística e da Polícia Técnica do Rio.
Carlos Chagas recebe mais mortos
Este ano, no Hospital Estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes, dos 184 baleados atendidos na emergência, 91 chegaram mortos. O hospital é o que mais recebe cadáveres no estado. Há meses em que o número de mortos que dão entrada na emergência é maior do que o de baleados vivos. Para se ter uma idéia, dos 55 baleados atendidos na unidade no mês de fevereiro, 30 já estavam mortos. Os registros policiais, em geral, se referem às vítimas como homem pardo, sem identificação, ¿morto ao dar entrada no hospital.¿ O volume é tão grande que fez com que as comissões de óbitos dos hospitais criassem a categoria ¿Já cadáver¿ para organizar as estatísticas.
A prática policial não é recente. Entre janeiro de 2002 e fevereiro deste ano, por exemplo, o Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), do governo federal, socorreu 1.371 vítimas de armas de fogo, sendo que 537 chegaram mortas. A série ¿Órfãos da violência¿, publicada pelo GLOBO em 2004, já revelava que, em um terço dos casos de homicídios pesquisados, os locais de morte informados nas certidões são hospitais, em geral da rede pública. O Carlos Chagas foi citado como lugar de óbito em 232 casos. Ainda de acordo com o levantamento, 62,6% das vítimas levaram tiros na cabeça e apresentaram marcas de execução.
¿ O único profissional que pode atestar a morte é o médico. Morte é tão importante que o médico tem que estudar dez anos. Eles têm condições de remendar braços e pernas. Eu já vi pessoas soterradas e vivas e, por isso, esse quadro não vai mudar nunca. PM não decide pela vida ¿ argumenta o chefe do 1º Comando de Policiamento de Área da Polícia Militar, coronel Marcus Jardim.
Fotos colecionadas por alguns médicos que trabalham em grandes emergência do Rio não deixam dúvidas.
¿ Na maioria das vezes, os corpos chegam dilacerados por armas de fogo. Qualquer leigo poderia atestar a morte ¿ afirma um cirurgião, chefe de uma emergência do Rio.
De acordo com plantonistas das emergências, os enfermeiros são os mais prejudicados:
¿ Somos obrigados a limpar o corpo antes de encaminhar ao necrotério e isso requer tempo. O pior é quando o PM diz aos parentes da vítima que ela chegou viva na unidade, transferindo para nós a fúria das pessoas que tiveram um parente assassinado ¿ contou uma enfermeira do HGB.
De janeiro a abril deste ano, o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, atendeu 250 baleados, sendo que 64 já chegaram sem vida. Na terça-feira passada, quatro homens baleados durante operação policial na Vila Cruzeiro, no mesmo bairro, foram levados para a emergência da unidade de saúde. Os quatro chegaram mortos, sendo que dois estavam num carro blindado da PM. Com medo, médicos e enfermeiros não se identificam, mas denunciam.
¿ Somos intimidados pelos policiais a receber os cadáveres. Eles retiram os corpos de dentro do caveirão e jogam na emergência. Em dias de conflito nas comunidades vizinhas, os policiais trazem até cinco corpos de uma só vez ¿ contou um médico, plantonista do Getúlio Vargas.
Há médicos que afirmam já saber quando só há cadáveres nos carros da polícia:
¿ Quando os policiais chegam correndo, com sirene ligada e gritando por uma maca, já sei que o paciente está morto dentro do carro. Mas, quando chegam devagar, pode ter certeza de que o bandido está vivo ¿ disse um plantonista do HGB.
Dizendo que os policiais podem até não ter competência legal para atestar óbitos, Josué Kardec, diretor do Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro, defende uma solução que não seja a de despejar cadáveres nas emergências
¿ Hospital tem que tratar de quem tem chance de vida. Mesmo os já sabidamente cadáveres são trazidos do mesmo jeito. E o transtorno é grande. É preciso, por exemplo, providenciar acomodação para o corpo, o que significa subtrair a maca de alguém que poderia estar deitado e não sentado na cadeira. Ocupa tempo de médicos, enfermeiros e do pessoal da limpeza, um transtorno no meio de todos os problemas que já temos.
Trabalho é afetado, afirma diretor
No Souza Aguiar, de janeiro a abril deste ano, foram socorridas 152 pessoas baleadas, sendo que 18 chegaram mortas.
¿ Não há uma preocupação do hospital em identificar quem traz o cadáver, mas a maioria chega pelas mãos dos policiais. Em abril de 2007, por exemplo, a PM levou de uma vez só oito homens mortos para a emergência. Aquilo foi um circo. Todos queriam ver o que estava acontecendo, tirando a atenção do foco do trabalho, que é o atendimento ¿ relembra o diretor do Souza Aguiar, referindo-se aos mortos de um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Mineira, no dia 17 de abril de 2007.
O Hospital Municipal Miguel Couto, no Leblon, embora não tenha a estatística dos ¿já cadáveres¿, também costuma receber da polícia pessoas mortas, mas em menor volume. Em janeiro, por exemplo, dos 20 baleados socorridos na emergência da unidade, apenas um já era cadáver. A médica Solange de Alencar Matos de Bevilacqua, diretora do Miguel Couto, acredita que seja pela boa relação da administração da unidade com a polícia.
¿ Na verdade, acontece aqui um pouco menos do que nos outros hospitais da nossa rede. Talvez pela localização ou pelo bom relacionamento com batalhão e as delegacias da região. Eles protegem um pouco o hospital disso. Passamos por um período ruim durante a guerra na Rocinha, em 2003, mas voltamos à estabilidade.