Título: Liberdade nos portos
Autor: Mello, Nilson
Fonte: O Globo, 26/05/2008, Opinião, p. 7
A senadora Ideli Salvati, do PT catarinense, discursou recentemente no Senado contra os terminais portuários privativos. Segundo ela, esses projetos constituem uma concorrência desleal com os portos públicos. Na verdade, tendem a ser mais eficientes, e por isso são tão necessários. Calcula-se em 60 berços de atracação para navios porta-contêineres o déficit estrutural nos portos brasileiros. Os portos públicos arrendados sob regime de concessão na década de 1990 já operam no limite de sua capacidade.
O elevado tempo de espera para atracação das embarcações nos principais portos brasileiros é fator prejudicial aos interesses nacionais, na medida em que pressiona custos e compromete a competitividade do setor produtivo. Demora em porto é sempre sinônimo de prejuízo.
Ciente dos gargalos representados pelo esgotamento da capacidade logística, a agência responsável pela regulação e fiscalização do setor, a Antaq, tem procurado agilizar a outorga de autorizações de terminais privativos de uso misto (que movimentam carga própria e de terceiros).
Contudo, os arrendatários dos terminais públicos, que atuam sob o regime de concessão, organizam-se, neste momento, para impedir a operação desses terminais privativos, alegando sua "ilegalidade" e o risco de promoverem "uma competição desenfreada" no setor.
Por meio da entidade que os representa, propuseram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma argüição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de liminar, visando a questionar autorizações concedidas pela Antaq e, conseqüentemente, impedir a disseminação desse tipo de empreendimento.
A insegurança jurídica decorrente dessa demanda desestimula novos investimentos e paralisa os já em curso, justamente num momento em que o Brasil precisa eliminar gargalos e ampliar a sua capacidade logística no setor.
O argumento da ilegalidade levantado na argüição é inconsistente, uma vez que a Antaq tem o amparo da própria Constituição federal - que, em seu artigo 21, inciso XII, alínea F, dispõe que os portos podem ser explorados mediante autorização. Tem ainda o respaldo expresso da lei 8.630/93 (Lei de Modernização dos Portos) e da lei 10.233/01, que criou a agência.
Na verdade, a argüição encaminhada ao Supremo tenta encobrir o verdadeiro motivo que leva os arrendatários de portos públicos a se insurgir contra os novos terminais privativos: o temor de uma maior competição no setor de logística portuária, algo que beneficiaria todos os usuários de transporte marítimo e de serviços portuários.
Válido dizer que os terminais privativos de uso misto exigem investimentos de grande soma, em projetos que chegam a R$1 bilhão. Em função dos pesados investimentos, os projetos reúnem investidores de diferentes segmentos, desde empresas especializadas em transporte e logística a instituições financeiras.
Tal característica por si só contribui para a pulverização dos interesses e a prevenção de monopólios liderados por um grupo hegemônico, características que se harmonizam com o princípio da livre concorrência.
É válido lembrar ainda que os arrendatários dos terminais públicos também podem investir em terminais privativos, em igualdade de condições com novos players - o que gera mais concorrência.
O Brasil precisa aumentar seus investimentos no setor portuário, a fim de atender à crescente demanda do comércio exterior. O poder público esgotou a sua capacidade de investimento, até porque elegeu outras prioridades fiscais.
Assim, os terminais privativos de uso misto constituem a única possibilidade de ampliação e de modernização da logística portuária. E, uma vez que são autorizados e fiscalizados por órgão competente, que age em conformidade com a lei, não há qualquer justificativa para impedir a sua instalação e o seu funcionamento.
Ao levar a questão à Justiça, os concessionários de terminais públicos defendem seus interesses. Ao tomar seu partido, ainda que indiretamente, a senadora Ideli Salvati age de boa-fé, mas comete um equívoco. Coibir a expansão dos terminais privativos equivale a perpetuar, no setor portuário, práticas patrimonialistas - aquelas em que o Estado beneficia poucos em detrimento de muitos.
O Brasil, que já teve uma lei de reserva na informática, não precisa de uma Lei de Reserva dos Portos.
NILSON MELLO é jornalista, advogado e consultor de empresas.