Título: Reparação histórica
Autor: Alencar, Chico
Fonte: O Globo, 26/05/2008, Opinião, p. 7

Com 98 anos de atraso, um decreto legislativo do senador Rui Barbosa, em 1910, vai vigorar de verdade: trata-se da concessão de anistia post-mortem a João Cândido e demais participantes da Revolta da Chibata, que eclodiu em 22 de novembro daquele ano. O projeto, de iniciativa da senadora Marina Silva (PT/AC), é uma denúncia da traição do governo do Marechal Hermes, que acenou com o perdão dos revoltosos para que eles depusessem armas. E um anúncio de que a justiça histórica é sempre possível, mesmo que demore quase um século.

O motim da marujada naquela que era, no início do século passado, uma poderosa Armada, teve objetivo de dignidade humana: o fim dos castigos corporais na Marinha do Brasil. Motivo nobre e atual: na verdade, João Cândido, alcunhado de "Almirante Negro", liderou um movimento contra a tortura. Esta, ao contrário da praticada na ditadura de 1964/1984, tinha estatuto legal, determinando-se sangrentas chibatadas e "bolos" na palma das mãos para quem não obedecesse às ordens superiores.

Os marinheiros rebelados mostraram perícia incomum no manejo dos vasos de guerra, e as autoridades da então capital da República ficaram assustadas. "Como esses analfabetos, negros e mulatos ousam agir assim, e com tal destreza?" - indagavam. Canhoneiras apontadas para os prédios do poder, restou a negociação.

Herdeiros do autoritarismo imperial, os dirigentes da nossa singular República sem povo, oligárquica, reagiram tão logo puderam, após o aparente reconhecimento dos pleitos dos insurretos: todos os líderes foram presos. Os que sobreviveram à masmorra foram condenados à miséria para o resto de suas vidas. João Cândido, que faleceu esquecido e pobre, aos 89 anos, tornou-se vendedor de peixes no antigo entreposto da Praça Quinze.

Desta luta inglória restou, apesar da cruel repressão, a abolição dos castigos corporais como método de manutenção da hierarquia militar. Falta o reconhecimento daquele que "tem por monumento as pedras pisadas do cais", como canta o belíssimo (e censuradíssimo, quando lançado) samba de João Bosco e Aldir Blanc, "O mestre-sala dos mares".

Estátuas e monumentos de nossa cidade, quase sempre, homenageiam os dominantes de cada época, em função da leitura parcial que se faz do nosso processo histórico. É chegada a hora de se valorizar os lutadores do povo, que reagiram às injustiças. No velho cais do Paço e das barcas, onde a estátua do monarca D. João VI pontifica, há lugar para João Cândido e sua simbologia. Salve o Almirante Negro!

CHICO ALENCAR é professor de história e deputado federal (PSOL/RJ).