Título: Briga de índices
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 28/05/2008, Economia, p. 22

Já vi este filme. O Brasil brigava pelos índices. Qual deles media mais precisamente o que se passava? A metodologia do instituto distorcia o número final? Ministros trocavam de instituto. O governo mudava metodologias e calendários. Vista com a lucidez que o tempo traz, aquela era uma briga insensata. A inflação nos ameaçava naquele momento. O desmatamento da Amazônia é um perigo presente.

Os jornalistas tiveram muito pano para manga nos vários lances das brigas travadas naqueles tempos de inflação subindo. Descobriram até uma lei econômica, a chamada "maldição do índice", que se caracterizava pela seguinte regularidade: todo índice escolhido pelo ministro de plantão - para se livrar de um anterior que subira muito - passava a ser o índice que mais subiria nos meses seguintes. Até que a autoridade voltava arrependida ao índice anterior.

Houve brigas de institutos, com seus especialistas sustentando as virtudes de suas medições; houve fogueira de vaidades; houve manipulações das quais se aproveitavam os poderosos da vez. A Fundação Getúlio Vargas dizia que tinha o número mais abrangente, já que no IGP estava embutido tanto o que acontecia com os preços no atacado quanto no varejo; era um olhar dentro da cadeia produtiva. O IBGE sustentava que seu IPC era mais abrangente porque era coletado num número maior de cidades, e que os preços industriais da FGV eram declarados pelas empresas, então podiam não ser os efetivamente cobrados. Havia dentro do governo os defensores do INPC e os que preferiam o IPCA. A Fipe exibia sua forma de calcular, quadrissemanal, como a melhor. Cada um alegava que a sua POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares, pela qual são calculados os pesos dos itens no índice) era mais atual. Houve momentos em que o governo explicitamente pressionava o instituto oficial para que o número ficasse um pouco melhor, os técnicos resistiam às mudanças, os jornalistas contavam os bastidores.

Ficou, de todas essas batalhas, a sensação de inutilidade. O fato, sobre todos os números, é que o Brasil viveu, durante anos, a pior experiência inflacionária da sua história e nenhuma briga com o termômetro trouxe a solução. A grande lição é que a única forma de enfrentar um grande problema nacional é enfrentar o grande problema nacional.

O Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, é um órgão público, como o IBGE. Nele trabalham cientistas de diversas especialidades. Os números que ele tem trazido à sociedade brasileira podem ter maior ou menor precisão, podem ser aperfeiçoados, vão incorporar novos instrumentos no futuro porque a tecnologia avança. Mas nada tira deles o mérito de estarem revelando que a Amazônia vem sendo destruída impiedosamente ano após ano. Em alguns estados, o processo é mais intenso agora, mas, que ninguém duvide, quando a floresta for posta abaixo nas atuais fronteiras, que são Mato Grosso, Pará e Rondônia, principalmente, o ataque vai migrar para outros estados que parecem hoje mais protegidos, como o Amazonas.

As comemorações do governo Lula, de que o índice de desmatamento estava caindo, também lembram um filme já visto. Quando a inflação caía de 30% num mês para 25% no mês seguinte, o ministro de plantão exultava e dava declarações à imprensa de que a inflação estava alta, mas estabilizada, com tendência de queda e que continuaria caindo nos meses seguintes. Isso nunca deu certo, ela sempre voltava a subir. Não há inflação que se estabilize em 25% ao mês, não há taxa de desmatamento que se estabilize em 11.000 km² ao ano. É a doença que tem que ser enfrentada; é o processo.

As informações desse bastidor da taxa de desmatamento de abril são as seguintes: o ministro Sérgio Rezende, a quem o Inpe responde, não está impedindo a divulgação, mas houve uma série de ruídos dentro do governo desde que o ministro Carlos Minc disse que 60% do aumento do desmatamento tinham ocorrido em Mato Grosso. Isso exacerbou a fúria do governador Blairo Maggi, que já estava brigando com o Inpe desde que saiu a informação que o desmatamento tinha voltado a subir. Como o dado é calculado a partir de imagens de satélite, a visibilidade é fundamental. Neste começo do ano, houve mais cobertura de nuvens no Pará que em Mato Grosso. Portanto, mesmo se o dado for maior para Mato Grosso, isso não isenta o Pará. E vice-versa.

Os preços dos grãos e da carne dispararam no mercado internacional, o que é um incentivo poderoso ao desmatamento. O risco é imenso. Isso fortalece os que dizem que é desmatando que se abre espaço para a produção, a geração de riqueza e dos superávits comerciais. O argumento lembra a idéia da inflação benéfica. Havia economistas defensores da tese de que a inflação era necessária ao crescimento, ela daria um gás ao desenvolvimento; era parte do processo. O tempo provou, de forma tão avassaladora, que o desenvolvimento depende da estabilização que os velhos defensores da inflação não têm mais a coragem de dizer isso à luz do dia. Alguns ainda pensam.

Da forma predatória de destruir a Amazônia, não se fará o progresso. Da falta de respeito à lei, não se fará uma nova ordem. A história ensina certas lições, mesmo quando os temas parecem ser totalmente diferentes; e é sensato aprender com os flagelos passados, já superados.