Título: Amazônia: de quem é?
Autor: Batista Jr., Paulo Nogueira
Fonte: O Globo, 31/05/2008, Opinião, p. 7

Há alguns anos, quando eu era pesquisador-visitante no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), um general do Exército foi convidado para proferir palestra sobre a Amazônia. Já não me recordo, infelizmente, do nome do conferencista e nem tenho certeza se ele era mesmo um general ou um oficial de outra patente. Mas não importa. O que ficou na minha lembrança foram as suas palavras iniciais.

Assim começou o palestrante: "A Amazônia não é do Brasil." Pausa para efeito dramático. E continuou: "A Amazônia é Brasil." Depois de um começo desses, um conferencista não precisa, a rigor, dizer mais nada. Pode se sentar e aceitar os aplausos merecidos da platéia.

A seqüência ironicamente sugerida ou insinuada pela afirmação inicial do general é aquela frase repetida por muitos otários, inclusive brasileiros, falsos brasileiros: "A Amazônia é da humanidade." Ora, como dizia Nietzsche, "a humanidade não existe". Peço ao leitor que reflita sobre esse aforismo do grande pensador alemão. O espaço não permite tratar do tema agora. Já publiquei um ensaio a respeito na revista "Novos Estudos Cebrap" e posso enviá-lo por e-mail a eventuais interessados.

Prossigo num registro mais prosaico. A "humanidade" é freqüentemente uma cortina de fumaça para os interesses e as prioridades dos países desenvolvidos, especialmente as velhas potências - os Estados Unidos e as nações da Europa Ocidental. Esses países vêm destruindo o meio ambiente há mais de século. Agora, se puderem, transformarão a Amazônia em "patrimônio da humanidade", a ser preservada para "benefício geral".

O Brasil e os outros países da bacia amazônica têm que abrir os olhos, portanto. É preciso reconhecer o seguinte - brasileiro não entende nada de Amazônia. Não percebe que "a Amazônia é Brasil" - e não uma colônia ou uma vasta propriedade do Brasil. Um dos aspectos menos conhecidos do nosso complexo de vira-lata é uma certa relutância em relação à selva amazônica, suposta lembrança da nossa condição semi-selvagem, incivilizada.

No exterior, ao contrário, a floresta tropical é muito valorizada e sempre ocupou grande parte do imaginário sobre o nosso país. Os crescentes problemas ambientais só fizeram intensificar essa velha percepção.

No início dos anos 70, eu era aluno de um colégio em Genebra, na Suíça. A nossa professora de literatura, uma senhora francesa, muito culta, nos fez ler um conto de Albert Camus que se passava na Amazônia brasileira. Durante a discussão do texto, ela virou para mim, o único brasileiro na classe, e perguntou: "Paulo, você achou adequada a descrição que Camus fez da floresta amazônica?" A pergunta me irritou um pouco - era o complexo de vira-lata que aflorava. Respondi: "Não sei, nunca estive lá." A professora não se deu por satisfeita: "Mas, como assim: de que cidade do Brasil você é?" O complexo de vira-lata deu arrancos violentos de víbora de túmulo de faraó. Respondi, ainda mais irritado: "Rio de Janeiro." E ela: "Pois, então!"

Veja, leitor, a que situação um brasileiro pode se ver submetido no exterior. Nem lembro mais se a minha humilhação permitiu que eu explicasse à professora e ao resto da classe que o Rio fica a mais de dois mil quilômetros dos limites da selva amazônica. Acredito que esse tipo de desinformação persiste até hoje.

Mas o meu espaço está acabando e eu ainda não disse o que eu queria realmente dizer. É o seguinte: o Brasil precisa, mais do que nunca, defender a Amazônia com unhas e dentes. E tratá-la com carinho e cuidado - como Brasil, como parte fundamental do território nacional a ser desenvolvida de forma sustentável, povoada por brasileiros e cada vez mais integrada ao resto do país.

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. é economista e diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional. E-mail: pnbjr@attglobal.net