Título: A ameaça é nossa
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 01/06/2008, Economia, p. 34
O debate brasileiro sobre a Amazônia entrou naquele desvio favorito que o leva para longe do ponto principal. Voltou a tese xenófoba de que a ameaça à região são os "estrangeiros". Se há estrangeiros cometendo ilegalidades, isso é caso de polícia, mas números, fatos e evidências mostram que são os brasileiros que estão pondo abaixo a floresta. Infelizmente somos nós a principal ameaça.
É confortável a idéia de que o mundo cobiça e ameaça destruir o que é nosso e que protegemos bem. O berço é esplêndido, mas não podemos dormir com essa. Especuladores e picaretas estrangeiros sempre existirão por lá. Gente oferecendo pedaços do paraíso a preço barato para inglês ver em terra onde a maioria dos títulos de propriedade é falsa sempre vai aparecer. Mas a verdade dolorosa é que foram os brasileiros que, em dez anos, abriram uma cratera do tamanho do Estado de São Paulo na floresta mais rica e biodiversa do planeta. Somos nós, os donos, que estamos pondo em risco nosso próprio patrimônio.
No debate dos últimos dias, autoridades públicas pediram o direito de não cumprir a lei. O governador de Mato Grosso afirmou que só 25% dos produtores do seu estado estão preparados para provar a regularidade fundiária e ambiental exigida pela resolução do Conselho Monetário Nacional. Ou seja, 75% dos produtores de Mato Grosso não respeitam as leis ambientais. Um absurdo que só pode ser dito impunemente porque nos acostumamos com o inaceitável. Em entrevista que me concedeu na Globonews, Blairo Maggi disse que os produtores precisam de seis meses para cumprir a resolução; ao GLOBO, ele disse outra coisa, defendeu a extinção da resolução. O ministro Mangabeira Unger defendeu que quem "tem o gozo da posse da terra goze das prerrogativas da propriedade". Será que o ministro está dizendo que quem grilou deve ficar com a terra pública?
Ainda não se sabe se é para valer a resolução que diz que a lei é para valer, pois o presidente disse que tem 30 dias para pensar. Ela tem prazo até 1º de julho para entrar em vigor. Tudo é surrealista.
Antes de propor essa resolução ao CMN exigindo respeito a lei fundiária e ambiental, o Ministério do Meio Ambiente estudou o tema e preparou uma nota técnica. Os dados são claros. Quando o financiamento aumenta, o desmatamento cresce. Os municípios que mais desmatam são os que mais recebem financiamento. Há uma correlação direta entre volume e localização do crédito e a ampliação do crime. O país está financiando a destruição do seu próprio patrimônio.
Aos dados: em 2006 e 2007, os estados de Mato Grosso, Pará e Rondônia receberam 81% do crédito rural oficial para a região e foi justamente nestes três estados onde houve 85% do desmatamento. A curva do desmatamento e a da concessão do crédito são imagens no espelho. A nota técnica compara os piores e os melhores na lista dos 12 municípios que mais desmatam no Pará e nos 19 que mais desmatam em Mato Grosso. Assim: foi feita uma lista desses municípios críticos dos quatro que mais desmataram para comparar com os quatro da lista que menos desmataram. No Pará, os quatro piores receberam 128% mais crédito e desmataram 300% mais que os quatro municípios melhores. Em Mato Grosso, os quatro piores receberam 221% mais crédito e desmataram 48% mais que os quatro municípios que menos desmataram.
Quem tem se aproveitado do crime? Nós mesmos. A madeira ilegal é consumida no próprio Brasil. O gado que cresce nas pastagens recém-feitas após a queima da mata vai para os açougues brasileiros. O carvão feito lá vai para os fornos das nossas produtoras de ferro-gusa.
É nosso o desleixo que faz com que os recursos biogenéticos da Amazônia sejam desconhecidos. O temor da biopirataria é curioso. Se achamos que piratas querem nos roubar, é porque temos consciência do tesouro que guardam as matas da Amazônia; mesmo assim, as destruímos; se sabemos que há tesouros lá, por que não tentamos nós mesmos descobrir, usar, patentear e industrializar esses bens? Por isso é bem-vinda a proposta da Academia Brasileira de Ciências (ABC), preparada por cientistas do nível de Bertha Becker e Carlos Nobre, de que sejam feitos investimentos pesados na formação de pesquisadores e em centros de pesquisas de institutos tecnológicos na Amazônia. A proposta completa está no site da ABC (http://www.abc.org.br).
O coração verde-amarelo bate forte quando alguém sugere que ONGs, piratas e milionários estrangeiros querem ocupar a nossa terra e nos roubar, mas foge da luta quando é para defendê-la dos crimes cometidos por próprios brasileiros. O primeiro risco é, em parte, imaginário; o segundo é totalmente real.
O sueco Johan Eliasch precisa explicar melhor o que disse e o que pretende, mas, tomado pelo valor de face, está ludibriando a boa-fé dos europeus oferecendo o que não tem; a seita do Reverendo Moon tem imensas terras na região e é um mistério o que acontece nelas; madeireiras da Malásia, anos atrás, foram aceitas na região, quando se sabe o que elas já fizeram na própria Malásia. Existem biopiratas fingindo-se de ONGs humanitárias, mas são minoritários diante das ONGs estrangeiras, ou brasileiras, que têm parte do seu financiamento de instituições internacionais e que estão por lá lutando sinceramente pela preservação. Que a xenofobia, açulada recentemente, não nos impeça de ver quem são os inimigos e quem são os aliados.