Título: Que tempos!
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 29/05/2008, O Globo, p. 24

O momento econômico do mundo tem complicações que costumam acontecer separadamente. Desta vez, as encrencas chegaram juntas: recessão nos Estados Unidos, inflação acelerando no mundo inteiro, choque do petróleo. Normalmente uma encrenca desmonta a outra. Uma recessão na maior economia e desaceleração mundial deveriam derrubar o preço do petróleo, reduzindo a inflação.

A inflação está dobrando ou triplicando em todos os países. Em alguns, a alta é menos acentuada; felizmente estamos nesse grupo de países. Mas China, Índia, Indonésia, Arábia Saudita estão com taxas perto de 10%. Países do Golfo estão com inflação de dois dígitos. A Rússia está com 14%. A Argentina, 25% e a Venezuela, 29%. Tudo isso nos últimos 12 meses. Uma pesquisa sobre a expectativa da inflação argentina para os próximos 12 meses dá o assustador número de 36%. Como é possível que um país não tema a repetição de erro tão recente? Até o Chile, citado como exemplo de onde tudo dá certo na região, viu sua taxa subir de 2,5% ao ano para 8,3%.

A revista "Economist" acha que os países em desenvolvimento estão agora numa situação parecida com a que os países ricos viveram em 1970 e acredita que os erros estão sendo repetidos.

Os emergentes estão sendo lenientes com a inflação, evitando o aperto monetário, porque isso poderia levar a uma redução do crescimento, mas, agindo assim, estão alimentando a alta de preços.

Na Rússia, a inflação pulou de 8% para 14%; os juros nominais estão em 6,5%; os juros reais estão negativos em oito pontos percentuais, e os salários crescem a 30%. Sem chance de dar certo; a variável de ajuste será mais inflação.

Segundo a revista, os números estão mal contabilizados em vários casos, como na China, onde não entram na conta os preços dos serviços privados. Se os dados forem bem contabilizados, a "Economist" estima que, em cinco dos dez maiores países emergentes, onde vivem 2/3 da população mundial, hoje a inflação é de dois dígitos. Nos países mais pobres, a alimentação tem um peso maior na inflação que nos mais ricos, assim o fato econômico afeta mais diretamente os de menor renda que vivem nos países mais pobres. Além disso, há o risco de contaminação de outros preços. Em muitos países, como Venezuela, Argentina, China, o remédio que tentam usar já não deu certo antes: o controle de preços e preços subsidiados.

Enquanto isso, a crise nos Estados Unidos continua, apesar de ter passado o período das notícias espetaculares que causavam frenesi. O que se vive agora é a ressaca de uma crise que fez o Fed quebrar várias regras de ouro que os EUA viviam exibindo ao mundo, como: não resgatar bancos em dificuldades, não adiar cobrança de hipotecas. Isso provocaria moral hazard, diziam, ou seja, a desmoralização da autoridade monetária. Eles mudaram as regras quando a confusão era lá, o que atenuou as perdas dos bancos, mas não ajudou o consumidor, que hoje está com o menor índice de confiança na economia em 28 anos.

A inflação mundial é provocada pela alta dos preços da energia e dos alimentos. Os especialistas se dividem na dúvida sobre se as commodities sobem pelo efeito de uma bolha especulativa ou se é uma alta justificada. Há um pouco dos dois. Não é exatamente bolha, pois a alta não está totalmente descolada dos fundamentos; mas há uma presença muito mais forte hoje dos mercados de futuros na formação desses preços à vista.

Nos alimentos, o disparo inicial dos preços foi provocado pela quebra de oferta, pelas secas em países produtores, mas a alta da demanda é que consolidou o novo patamar de preços. Esse crescimento do consumo veio dos países em desenvolvimento: 90% do aumento do consumo de metais e petróleo e 80% do aumento do consumo de alimentos no mundo, de 2002 para cá, vieram de países emergentes.

O crescimento forte de economias como China e Índia elevou os preços de commodities, e isso exportou o boom para emergentes exportadores de commodities. Os juros muito baixos, na maioria desses países, alimentaram, segundo a revista inglesa, o surto inflacionário.

O petróleo passou quatro anos subindo fortemente, mas o fenômeno se acelerou nos últimos 12 meses em que o barril dobrou de preço em dólar e subiu fortemente até mesmo em moedas que se fortaleceram. O que especialistas disseram ao "Wall Street Journal" é que há uma causa clássica para o aumento: o velho desequilíbrio entre oferta e demanda.

O Brasil está sendo apresentado como um país que tem se comportado razoavelmente bem diante desse desequilíbrio mundial, porque evitou a tendência a relaxar a política monetária. Ao elevar os juros e perseguir a meta de inflação, o Banco Central brasileiro estaria fugindo do problema que tem realimentado a inflação em muitos outros países emergentes. Por outro lado, a alta de juros, num mundo de juros baixos, está levando a uma apreciação do real a um nível que começa a mostrar seus efeitos no desequilíbrio da conta corrente. Um país que já desabou várias vezes por causa desse déficit deve tomar cuidado. O déficit atual de 1% do PIB é pequeno, mas o ritmo do crescimento do desequilíbrio nos últimos meses é surpreendente. Não é o tempo certo para comemorações. É hora de aumentar a precisão dos instrumentos econômicos que nos desviem dos muitos riscos à espreita.