Título: O pré-sal e o fundo soberano
Autor: Borges, José Pio
Fonte: O Globo, 02/06/2008, Opinião, p. 7
As críticas à criação de um fundo soberano podem ser resumidas a três questões. De onde virão os recursos? Apesar de a receita fiscal vir surpreendendo favoravelmente a cada mês, o aumento dos gastos em geral, e de pessoal em particular, vem preocupando mesmo membros da equipe de governo.
Para que um fundo soberano se o Banco Central já vem adquirindo dólares há muitos anos? Não será uma forma de intervir mais ativamente no câmbio em face das críticas à sobrevalorização do real?
E, finalmente, como será a gestão desse fundo? Será que o fundo soberano é necessário à expansão de empresas brasileiras no exterior? É óbvio que empresas que já se internacionalizaram, como Vale, Gerdau e AmBev, entre outras, não dependem dessa fonte de financiamento. É possível que haja uma demanda de criar uma fonte de financiamento no exterior por empresas de porte médio, de crescimento mais recente, baseado fortemente em financiamentos de longo prazo do BNDES, ainda a principal fonte desse tipo no Brasil. Essa insegurança se deve a, até poucos anos atrás, o mercado de capitais não oferecer alternativas àqueles recursos. Não me parece, no entanto, que esse possa ser o objetivo principal do fundo.
Todas essas questões têm fundamento. Mas me parece que a criação do fundo soberano tem outra intenção que não foi ou não pode ser transmitida claramente pelo governo.
O anúncio da descoberta de Tupi, primeiro megacampo da camada de pré-sal, pela ministra Dilma foi objeto de críticas e até mesmo de ironia quando foi mencionado que o Brasil passaria a pertencer ao restrito clube dos exportadores de petróleo, comparando-se aos países do Oriente Médio. Ora, mesmo com o campo de Tupi, as reservas brasileiras atingiriam cerca de 13 bilhões de barris, um salto importante que nos elevaria a um patamar próximo ao México, com 15 bilhões de barris, mas ainda distante dos 80 a 130 bilhões de barris de países como Venezuela, Kuwait e Iraque.
Desde então tem havido várias declarações e desmentidos, oficiais ou não, mas já não há dúvidas de que o potencial é gigantesco. O megacampo Carioca, ao sul, pode ter uma capacidade de seis vezes a de Tupi. Bancos como o Credit Suisse e UBS já trabalham com estimativas de investimento no setor com base numa reserva brasileira de 50 bilhões de barris. Já há relatórios que indicam que as reservas podem atingir mais de cem bilhões de barris, e alguns especialistas são ainda mais otimistas: acreditam que as reservas brasileiras de petróleo e gás estarão entre as cinco maiores do mundo!
É natural que haja cautela, pois a maior parte da área do pré-sal ainda não foi licitada e, embora se saiba que a Petrobras, diretamente ou através de suas parcerias, deverá ficar com a maior parcela da exploração das novas descobertas, qualquer estimativa oficial é sensível, antes da conclusão das licitações, por se tratar da maior empresa de capital aberto brasileira e uma das maiores do mundo.
A perplexidade com esta nova realidade é tal que surgem rumores, baseados ou não em iniciativas concretas, de mudança da lei que rege as licitações, ou mesmo da criação de uma nova empresa estatal de petróleo sem acionistas privados que se beneficiassem das novas descobertas. Felizmente, o governo do presidente Lula tem se caracterizado pela paciência de ouvir até mesmo propostas insanas, mas de, eventualmente, tomar a decisão mais sensata. O sucesso comprovado com as novas descobertas atesta o acerto das políticas adotadas até agora.
É evidente que a descoberta de petróleo no pré-sal é um fato da maior relevância. O boom do petróleo nos próximos 20 anos induzirá no país um fenômeno semelhante à explosão da demanda e preços dos produtos agrícolas e minerais e do renascimento do setor de construção civil ocorridos nos últimos anos.
Aparentemente, a Petrobras e o BNDES já se preparam para isso. Será necessário criar um novo plano de desenvolvimento de grandes dimensões. A Petrobras sempre estabeleceu metas de conteúdo nacional em suas compras de equipamentos e serviços. Os investimentos em exploração, que se situavam por volta de US$1,5 bilhão por ano, deverão atingir cerca de US$20 bilhões por ano. O financiamento dos programas de expansão dos fornecedores de equipamentos e prestadores de serviços demandará uma atenção especial. O anúncio recente da intenção da Petrobras de contratar 40 navios-sonda, plataformas de perfuração, 146 navios de apoio às plataformas e 26 petroleiros é apenas o começo.
Mas, como disse o ministro Reis Velloso na abertura do seu Fórum deste ano, a abundância de recursos naturais para exportação pode ser um trunfo ou uma maldição.
O fenômeno ocorrido na Holanda a partir da descoberta de vastas reservas de gás natural na década de 60 ensejou a criação de novo conceito econômico, a "Dutch disease" ou "doença holandesa". A exploração dos recursos naturais e a sua exportação levou a um declínio do setor industrial e a uma apatia generalizada em conseqüência da crônica sobrevalorização da moeda. Dado que a auto-suficiência em petróleo no Brasil já foi alcançada, apenas uma parcela pequena da futura produção será para o mercado interno; a grande maioria da produção futura será exportada. A falta de planejamento para tal mudança poderá ter como conseqüência a desindustrialização de uma economia ricamente diversificada como a brasileira. Se, por exemplo, o preço do petróleo continuar por volta de US$120 e o custo total de produção for da ordem de US$60 (incluindo custos de capital), o acúmulo de reservas será o dobro de todos os custos incorridos.
Nesse contexto, a discussão sobre a criação do fundo soberano é oportuna. Basta comparar a experiência recente da Rússia e da Noruega. Na Rússia, que vem se tornando o maior produtor mundial de petróleo e gás, superando a Arábia Saudita, o crescimento do PIB vem sendo acompanhado de alta taxa de inflação e apatia nos setores não relacionados ao petróleo. Na Noruega, que criou e vem gerindo com grande competência um fundo soberano, a inflação vem se mantendo em patamar baixo, mesmo com um elevado crescimento do PIB.
A proposta do fundo soberano no Brasil prevê todo um arcabouço institucional com características novas. Em primeiro lugar, a sua criação por projeto de lei descarta a intenção de urgência e de que o objetivo seria a intervenção no câmbio a curto prazo. Seria muito mais fácil atuar através do Banco Central e não propor um novo instrumento jurídico. A exigência de dotação orçamentária para prover recursos ao fundo para a aquisição de dólares reforça a hipótese de que não se pretende aumentar imediatamente a compra de dólares.
No entanto, o fundo soberano, criado através de lei e com normas adequadas, poderá ser de grande importância no futuro não muito distante.
Estamos habituados à falta de planejamento no Brasil. No caso da iniciativa de criar o fundo soberano o que surpreende e dificulta a compreensão é exatamente que o seu objetivo e a sua necessidade são de longo prazo, e para entendê-los é preciso atentar aos detalhes do projeto do governo.
JOSÉ PIO BORGES, engenheiro, é ex-presidente do BNDES.